Economia circular na indústria do calçado: caminhos para a inovação, sustentabilidade e conformidade
- marciele195
- há 5 dias
- 6 min de leitura
Atualizado: há 9 minutos

Denise Curi
Consultora e mentora em Sustentabilidade e ESG, doutora em Engenharia de Produção e palestrante internacional. Atua há mais de 30 anos no desenvolvimento de projetos corporativos e na formação de consultores em sustentabilidade. Foi uma das responsáveis pela implementação da reciclagem PET no Brasil, contribuindo para a consolidação da cadeia de reaproveitamento de embalagens no País.
Resumo
O presente artigo aborda a aplicação prática dos princípios da economia circular na indústria calçadista, setor que enfrenta desafios significativos devido à complexidade de materiais e processos envolvidos. Com base em dados setoriais e casos internacionais, explora-se como inovações em materiais, design para desmontagem, logística reversa e tecnologias de reaproveitamento - como pirólise, reciclagem mecânica e química - podem apoiar a transição para modelos mais circulares. São apresentadas referências de iniciativas como a The Footwear Collective e Fashion for Good. O artigo propõe caminhos práticos para a indústria brasileira, como programas de recolhimento de calçados usados, parcerias intersetoriais e integração com mercados globais, visando a reduzir o descarte e gerar valor econômico e ambiental.
Introdução
A indústria global de calçados é um dos maiores segmentos do setor têxtil e de moda, com uma produção estimada de 23,9 bilhões de pares em 2024 - um crescimento de 6,9% em relação a 2023, quando houve retração para cerca de 22,4 bilhões de pares (World Footwear Yearbook, 2025). A Ásia concentra aproximadamente 86% dessa produção, enquanto América Latina e Europa mantêm participação relevante, especialmente em segmentos de maior valor agregado.
Esse volume expressivo representa não apenas oportunidades econômicas, mas também um enorme desafio socioambiental: a fabricação, uso e descarte de calçados envolvem consumo intensivo de recursos, emissões de gases de efeito estufa e geração de resíduos complexos de reciclar. Nesse cenário, a economia circular surge como um modelo capaz de reduzir impactos, gerar inovação e manter a competitividade do setor.
Fundamentos da Economia Circular aplicados ao setor
A economia circular é um modelo econômico regenerativo que busca desvincular o crescimento econômico do consumo finito de recursos. Ela substitui o modelo linear “extrair-produzir-descartar” por ciclos fechados.
Segundo a Ellen MacArthur Foundation, sua aplicação baseia-se em três princípios fundamentais: (1) eliminar resíduos e poluição desde o design; (2) manter produtos e materiais em uso pelo maior tempo possível; e (3) regenerar sistemas naturais.
No contexto do setor calçadista, esses princípios significam projetar calçados com design para desmontagem, utilizar materiais recicláveis ou de origem renovável, e implementar sistemas de recolhimento e reaproveitamento dos produtos ao final da vida útil.
A ISO 59000, série de normas internacionais sobre economia circular, fornece diretrizes para implementar esses princípios em processos industriais, garantindo padronização e rastreabilidade. Já a Diretiva Europeia 2008/98/EC sobre resíduos estabelece metas de reciclagem e a responsabilidade estendida do produtor, influenciando diretamente as cadeias globais de fornecimento.
Para a indústria calçadista brasileira, adotar esses fundamentos significa alinhar-se às melhores práticas globais, atender a exigências.
Impactos ambientais e sociais
A indústria global de calçados exerce uma pressão significativa sobre os recursos naturais e sobre as comunidades envolvidas em sua cadeia de valor. Esses impactos se manifestam em todas as etapas do ciclo de vida do produto - desde a extração de matérias-primas até o descarte pós-consumo.
Impactos ambientais
- Consumo intensivo de recursos: a produção de calçados, especialmente os que utilizam couro, demanda grandes volumes de água, energia e insumos químicos.
- Uso de substâncias químicas perigosas: processos de curtimento tradicional empregam compostos como cromo hexavalente, com risco de contaminação de solos e cursos d’água.
- Geração de resíduos sólidos: retalhos de couro e sintéticos, aparas de borracha e tecidos são frequentemente destinados a aterros, contribuindo para a poluição e o desperdício de materiais de alto valor.
- Pós-consumo e microplásticos: calçados descartados em lixões ou incineradores liberam microfibras e microplásticos, que podem se acumular em ecossistemas terrestres e aquáticos.
- Pegada logística: transporte globalizado aumenta as emissões de gases de efeito estufa, especialmente na distribuição internacional.
Impactos sociais
- Condições de trabalho precárias: em alguns polos produtores, trabalhadores enfrentam jornadas longas, salários baixos e exposição a agentes químicos nocivos.
- Trabalho informal: parte significativa da produção e reparo de calçados ocorre na informalidade, dificultando a garantia de direitos trabalhistas.
- Questões de gênero: a mão de obra feminina representa uma parcela expressiva nas linhas de montagem, mas ainda enfrenta barreiras de remuneração e progressão profissional.
- Saúde ocupacional: riscos de doenças respiratórias e dermatológicas associados à manipulação de colas, solventes e pós de materiais.
Tecnologias para circularidade
A transição para a circularidade no setor calçadista envolve diferentes tecnologias e práticas:
- Seleção de materiais: substituição de insumos fósseis por alternativas de base biológica. O design para circularidade vem ganhando força no setor calçadista, impulsionado por inovações em materiais, como por exemplo o uso de bioplásticos compostáveis e recicláveis (startups como Balena).
- Reciclagem química (quebra de polímeros para regenerar matérias-primas),
- Tratamento de resíduos por pirólise: conversão de resíduos em óleo, gás e carvão, com potencial para tratar misturas complexas.
- Logística reversa e reciclagem: coleta de calçados usados no varejo e reinserção de materiais na cadeia produtiva.
- Reciclagem de calçados usados: implementar programas de recolhimento em pontos de venda, campanhas de devolução com incentivo ao consumidor, e parcerias com cooperativas ou recicladoras especializadas.
- FastFeet Grinded, especializada na reciclagem de calçados usados em novos insumos, mostram o potencial de transformar resíduos em matéria-prima de alto valor.
- Picvisa, triagem automatizada por visão computacional.
- Circular.fashion, plataforma de rastreabilidade e design para reciclagem.
- The 8 Impact, reciclagem de calçados e reaproveitamento de componentes.
Todas essas soluções devem ser acompanhadas por design para desmontagem e inovação em materiais (redução de adesivos tóxicos e separação facilitada de componentes).
Dificuldades e barreiras
Apesar do potencial, existem barreiras à adoção dessas tecnologias: altos custos de implantação, necessidade de triagem prévia, limitações técnicas para misturas complexas de materiais, baixa escala de aplicação e falta de regulamentação específica para calçados. Veja na tabela 1 as principais dificuldades encontradas na aplicação de tecnologias de reciclagem:

Essa complexidade torna desafiador o desenvolvimento de uma estrutura universal para a circularidade no calçado. Como resultado, marcas e fabricantes adotaram interpretações variadas de “circularidade”, levando a inconsistências nas práticas de design, produção e reciclagem. A falta de um entendimento compartilhado dificulta o desenvolvimento de soluções eficazes e escaláveis e desacelera a adoção de inovação pelo setor.
Três objetivos, contudo, convergem no sentido de aumentar a circularidade dos calçados: manter o calçado em uso pelo maior tempo possível; descarbonizar a produção; e minimizar o desperdício.
Alternativas e soluções
Para superar essas barreiras, a indústria pode adotar: design para desmontagem, capacitação técnica, parcerias com recicladores, programas de logística reversa, incentivos fiscais e créditos de carbono. O alinhamento com normas internacionais e o investimento em pesquisa também são cruciais.

Sempre é bom lembrar que projetos de reciclagem podem gerar crédito carbono, dependendo da tecnologia e do modelo de projeto adotado, o que pode jogar a nosso favor.
Conexão com regulações e normas
A legislação nacional e internacional avança para estimular a circularidade. No Brasil, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) estabelece diretrizes para a economia circular. No cenário global, destacam-se a Diretiva Europeia de Resíduos (2008/98/EC), que exigem maior responsabilidade dos produtores e metas de reciclagem.
Casos internacionais
Diversas empresas têm implementado modelos circulares no setor: a Adidas, em parceria com a Parley for the Oceans, fabrica calçados com plásticos oceânicos reciclados; a Veja utiliza algodão orgânico e borracha nativa da Amazônia; a Allbirds aposta em materiais renováveis como lã merino e cana-de-açúcar; a Native Shoes investe em programas de coleta e reciclagem para criar novos produtos. Iniciativas como The Footwear Collective e Fashion for Good demonstram o potencial da colaboração setorial.
Oportunidades e próximos passos
O setor calçadista brasileiro pode ganhar vantagem competitiva ao investir em circularidade, reduzindo impactos ambientais e alinhando-se a exigências globais. Programas de recolhimento de calçados usados, integração com recicladores e inovação em materiais devem ser priorizados para impulsionar essa transição.
Referências
Ellen Macarthur Foundation. https://www.ellenmacarthurfoundation.org/topics/circular-economy-introduction/overview?utm_source=chatgpt.com
OMNIA Retail. Sustainability Footwear Gains Traction in Creating a Circular Economy. https://www.omniaretail.com/blog/sustainability-footwear-gains-traction-in-creating-a-circular-economy
Fashion for Good. Footwear Circularity. https://www.fashionforgood.com/innovation-platform-2/how-it--works/footwear-circularity/
EarthDNA. The Footwear Collective. https://earthdna.org/home/the-footwear-collective/
FastFeetGrinded – piloto colaborativo validado pela Fashion for Good (2024): Detalha o processo de reciclagem de calçados, produção de granulados e validação com marcas globais Fast Feet Grinded+7Fashionfor Good+7Fashion for Good+7
FastFeetGrinded – separação mecânica de espuma, têxtil e borracha (dados quantitativos): Equipamento SRM e rendimento por tonelada reciclada https://www.scott-sports.com/us/en/fastfeetgrinded?utm_source=chatgpt.com
FastFeetGrinded – processo de desmontagem e separação com máquinas térmicas: explicação do processo de trituração e refinamento por tipo de material https://recycle.refashion.fr/en/creating-new-kicks-from-old-soles-how-a-dutch-recycling-company-is-tackling-footwear-waste-cnn/?utm_source=chatgpt.com
Balena – desenvolvimento de bioplástico compostável BioCir™: material biodegradável, injetável e compatível com processos industriais https://www.prnewswire.com/il/news-releases/balena-steps-out-with--100-biodegradable-footwear-301696931.html?utm_source=chatgpt.com
Balena + Stella McCartney – solado compostável BioCir Flex: colaboração para criar peças circulares compostáveis e recicláveis industrialmente https://sustainabilitymag.com/news/biodegradable-shoes-stella--mccartneys-collab-with-balena?utm_source=chatgpt.com
Vivobarefoot X Balena – protótipo 3D-print feito sob medida e compostável: design regenerativo e circular
EUROPEAN UNION. Directive 2008/98/EC on Waste. https://eur-lex.europa.eu/eli/dir/2008/98/oj/eng
BRASIL. Projeto de Lei nº 1874, de 2022. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2422879
ISO. ISO 59000 series – Circular Economy Standards. https://www.iso.org/sectors/environment/circular-economy



Comentários