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Qualidade de resistência dos couros de pescada curtidas com tanino vegetal: Regiões e sentidos do couro

Atualizado: 19 de set.

RIBEIRO, Rodrigo Soares1; MEYER, Matheus Pereira1; CANGIANELLI, Gabriela Hernandes1; MONTEIRO, Filipe Antônio1; LOPES, Analice de Lima2; OLIVEIRA, Gislaine Gonçalves3; CORRÊA, Stefane Santos1; SILVA, Stefania Caroline Claudino da4; DEPIERI, Mateus1; CORADINI, Melina Franco5; FILHO, Jerônimo Vieira Dantas5; CAVALI, Jucilene5; GOES, Elenice Souza dos Reis6; ALMEIDA, Fernanda Losi Alves de7; SOUZA, Maria Luiza Rodrigues de4; MARQUES, Diogo de Oliveira2 e BRONZI, Rafaela Dorni2.


1. Programa de Pós-Graduação em Zootecnia da Universidade Estadual de Maringá, PR, Brasil.

2. Acadêmico do Departamento de Zootecnia da Universidade Estadual de Maringá, PR, Brasil.

3. Departamento de Zootecnia, Universidade Federal do Sul e Sudoeste do Pará – Campus Xinguara; PA, Brasil.

4. Departamento de Zootecnia e Programa de Pós-Graduação em Zootecnia da Universidade Estadual de Maringá, PR, Brasil.

5. Departamento de Zootecnia e Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais, Universidade Federal de Rondônia, Brasil.

6. Departamento de Engenharia de Aquicultura da Universidade Federal da Grande Dourados, MS, Brasil.

7. Departamento de Ciências Morfológica da Universidade Estadual de Maringá, PR, Brasil



Resumo


Este trabalho teve como objetivo avaliar as propriedades mecânicas (resistência à tração, rasgamento e elasticidade) e a morfologia do couro de pescada amarela (Cynoscion acoupa) curtido com tanino vegetal, considerando diferentes regiões anatômicas (cranial, medial, caudal) e sentidos de retirada dos corpos de prova (longitudinal e transversal). A metodologia incluiu o curtimento ecológico das peles, ensaios mecânicos conforme normas ABNT/ISO, e análises microestruturais por microscopia eletrônica de varredura (MEV) e histologia.


Os resultados revelaram diferenças significativas entre regiões: a caudal apresentou maior resistência à tração (8,51 N/mm², p = 0,0018) e menor alongamento (33,8%, p = 0,0016), enquanto a cranial destacou-se pela elasticidade (52,6% de alongamento). Na região medial, o sentido longitudinal mostrou maior resistência à tração (8,10 N/mm² vs. 5,40 N/mm², p = 0,0008) e força de ruptura (151,60 N vs. 69,60 N, p = 0,0024), enquanto o transversal exibiu maior deformação (75,67% vs. 46,50%, p = 0,0008). A MEV confirmou a anisotropia do material, com fibras colágenas tipo I (57,35%) predominando na longitudinal.


Conclui-se que o couro de pescada amarela possui propriedades mecânicas diferenciadas por região e direção, sendo adequado para aplicações que demandem resistência (caudal/longitudinal) ou flexibilidade (cranial/transversal), com potencial de valorização sustentável de resíduos da indústria pesqueira.


Palavras-chave: Cynoscion acoupa, pele de peixe, resíduos, sustentabilidade, tração e alongamento


Abstract


This study aimed to evaluate the mechanical properties (tensile strength, tear resistance, and elasticity) and morphology of the skin of the acoupa weakfish (Cynoscion acoupa) tanned with vegetable tannin, considering different anatomical regions (cranial, medial, caudal) and directions of sampling (longitudinal and transverse). The methodology included ecological tanning of the hides, mechanical tests following ABNT/ISO standards, and microstructural analyses using scanning electron microscopy (SEM) and histology.


The results revealed significant differences between regions: the caudal region exhibited the highest tensile strength (8.51 N/mm², p = 0.0018) and the lowest elongation (33.8%, p = 0.0016), while the cranial region stood out for its elasticity (52.6% elongation). In the medial region, the longitudinal direction showed higher tensile strength (8.10 N/mm² vs. 5.40 N/mm², p = 0.0008) and breaking force (151.60 N vs. 69.60 N, p = 0.0024), whereas the transverse direction exhibited greater deformation (75.67% vs. 46.50%, p = 0.0008). SEM confirmed the material’s anisotropy, with type I collagen fibers (57.35%) predominating in the longitudinal direction.


It is concluded that the skin of Cynoscion acoupa presents region- and direction-dependent mechanical properties, being suitable for applications requiring strength (caudal/longitudinal) or flexibility (cranial/transverse), with sustainable potential for adding value to by-products of the fishing industry.


Keywords: Cynoscion acoupa, fish skin, residues, sustainability, tensile strength, elongation



Introdução


A crescente demanda por alimentos, impulsionada pelo aumento populacional, tem levado à intensificação da produção animal, com a indústria pesqueira desempenhando um papel fundamental no fornecimento de proteínas de alta qualidade. No entanto, esse processo gera subprodutos, como as peles de peixe, que frequentemente são descartadas ou destinadas a aplicações de baixo valor agregado, como a produção de farinhas para ração animal (BRAZ et al., 2021). Nesse contexto, a valorização desses resíduos por meio de processos sustentáveis representa uma oportunidade para reduzir o impacto ambiental e agregar valor à cadeia produtiva.


A pescada amarela (Cynoscion acoupa) é um dos principais recursos pesqueiros da região Norte do Brasil, correspondendo a 19% dos peixes desembarcados no Pará (MOURÃO et al., 2009). Sua distribuição geográfica abrange o oceano Atlântico, desde o Panamá até a Argentina, ocorrendo em toda a costa brasileira, com hábitos demersais e costeiros (SZPILMAN, 2000). A espécie atinge comprimento máximo de 100 cm, com média de 50 cm (LESSA, 2000), características que influenciam diretamente na qualidade e no aproveitamento de sua pele.


Quando beneficiada e transformada em couro, a pele de peixe se torna uma matéria-prima de alta qualidade, destacando-se por seu padrão exótico e peculiar, formado pelo mosaico decorrente da sobreposição de lamélulas e inserção das escamas, conhecido como “desenho de flor” (SOUZA et al., 2006). Em média, a pele representa 7,5% do peso total do peixe e, quando submetida ao processo de curtimento, pode ser convertida em um material versátil e de alto valor comercial (FRANCO et al., 2007).


O couro de peixe possui diversas aplicações, desde a confecção de vestuário e calçados até a produção de artefatos decorativos. No entanto, sua utilização requer a avaliação de propriedades mecânicas, como resistência à tração, ao rasgamento progressivo e elasticidade, que variam conforme fatores como espécie, idade, peso, orientação da pele (transversal ou longitudinal) e método de curtimento (YOSHIDA et al., 2016).


Nesse sentido, o curtimento ecológico, que utiliza taninos vegetais em substituição a metais pesados como o cromo, surge como uma alternativa sustentável, reduzindo o impacto ambiental sem comprometer a qualidade do produto (MATIUCCI et al., 2021). Essa abordagem não apenas minimiza os danos ao meio ambiente (CORRÊA et al., 2021), mas também atende à crescente demanda do mercado por materiais ecologicamente corretos.


Diante disso, este trabalho teve como objetivo analisar a resistência à tração, ao rasgamento progressivo e a elasticidade em diferentes regiões e sentidos de retirada dos corpos de prova do couro de pescada amarela curtido com tanino vegetal, além de caracterizar sua morfologia por meio de microscopia eletrônica de varredura.


Metodologia


O experimento foi conduzido no Laboratório de Processamento de Peles de Peixe e demais Espécies de Pequeno e Médio Porte da Universidade Estadual de Maringá, localizado na Fazenda Experimental de Iguatemi (FEI), no Paraná. Foram utilizadas peles de pescada amarela provenientes de capturas no litoral do Amapá. Um total de 10 peles foram acondicionadas em sacos plásticos, congeladas e transportadas em caixas isotérmicas até o laboratório, onde foram armazenadas em freezer a -18 °C até o início do processo de curtimento.


Processo de curtimento das peles


O curtimento seguiu a metodologia descrita por Souza (2004), com adaptações. Inicialmente, as peles foram descongeladas e submetidas ao remolho em solução de água e tensoativo por 60 minutos. Em seguida, passaram pelo descarne, no qual a camada hipodérmica foi removida para eliminar resíduos de carne e gordura. Após essa etapa, as peles foram pesadas para determinar as quantidades necessárias de insumos químicos, conforme especificado na Tabela 1.


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Ao término do processo de curtimento, os couros foram lavados e esticados sobre uma superfície lisa para secagem, seguido do amaciamento manual.


Retirada dos corpos de prova e teste de resistência dos couros


Após o processo de curtimento, procedeu-se à retirada dos corpos de prova para avaliação das propriedades mecânicas. Foram utilizados 10 couros por tratamento, considerando cada couro como unidade experimental. Os testes de resistência à tração e alongamento seguiram a norma ABNT NBR ISO 3376 (2014a), enquanto o rasgamento progressivo foi avaliado conforme ABNT NBR ISO 3376 (2014b). Os corpos de prova foram retirados com auxílio de balancim (ABNT NBR 2418, 2015) em três regiões distintas: cranial, medial e caudal, sempre no sentido longitudinal ao comprimento do peixe. Adicionalmente, na região cranial, foram obtidos corpos de prova no sentido transversal para comparação.


Antes dos ensaios, as amostras foram acondicionadas em ambiente climatizado a 23 ± 2 °C e umidade relativa de 50 ± 5% por 24 horas (ABNT NBR 10455, 2021), sendo previamente determinada a espessura de cada amostra para cálculo das propriedades mecânicas. Os ensaios foram realizados em dinamômetro EMIC, com velocidade de afastamento entre garras de 100 ± 10 mm/min e célula de carga de 200 kgf. O equipamento foi previamente calibrado pelo laboratório Emic-Dcame, credenciado pelo Cgcre/Inmetro (certificado nº 197).


Análises de microscopia eletrônica de varredura (MEV)


Para caracterização microestrutural, três amostras da região medial dos couros foram coletadas nos sentidos longitudinal e transversal, visando a avaliar a organização das fibras colágenas da derme. As amostras foram secas em estufa a 50 °C por 48 horas para remoção de umidade residual. Posteriormente, os fragmentos foram fixados em stubs de alumínio com fita dupla face de carbono e metalizados com camada de ouro de aproximadamente 10 nm (Sputter Coater FDU 010, Bal-Tec). As análises foram conduzidas no microscópio eletrônico de varredura SHIMADZU-SS550 (15 kV) do Complexo de Apoio à Pesquisa (COMCAP) da UEM, com captura de imagens em aumentos entre 500x e 2000x.


Análises histológicas para quantificação de colágeno tipos I e III


Para avaliação histológica, três amostras da região medial (sentido longitudinal) foram coletadas próximas às áreas de retirada dos corpos de prova mecânicos. O processamento incluiu desidratação em série alcoólica (70–100%), diafanização em xilol (1 hora) e inclusão em parafina (2 horas). Cortes de 5 µm de espessura foram obtidos em micrótomo automático (Leica RM 2145) e corados com Picrosirius para diferenciação das fibras colágenas: tipo I (vermelho) e tipo III (verde). As imagens foram capturadas em microscópio óptico Nikon Eclipse 80i acoplado à câmera Nikon DsFi1c, com aumento de 20x sob luz polarizada. A quantificação foi realizada no software ImageJ-Pro Plus 4.0 (Media Cybernetics).


Delineamento e análise estatística


O delineamento experimental adotado foi o inteiramente casualizado. Para comparação entre as três regiões anatômicas, os dados foram submetidos à análise de variância (ANOVA) seguida pelo teste de Tukey (p < 0,05). As comparações entre os sentidos longitudinal e transversal foram realizadas mediante ANOVA com teste t de Student (p < 0,05). Todas as análises foram processadas no software SAS (versão 9.00, SAS Institute Inc., Cary, NC).


Resultados e discussão


Descrição do “desenho de flor” e da morfologia do couro


O principal atrativo do couro de peixe reside no singular “desenho de flor”, padrão decorrente da disposição das lamélulas de proteção e inserção das escamas, que confere um aspecto visual diferenciado. Após o curtimento, esse arranjo forma um mosaico único, com variações no tamanho e na distribuição das lamélulas, características de cada espécie. A expressividade da textura está diretamente relacionada às dimensões das lamélulas — particularmente sua abertura e profundidade — sendo que padrões mais marcantes resultam em texturas mais pronunciadas e visualmente distintas (Vilhena et al., 2022).


Essas características morfológicas exclusivas, combinadas com o processo de curtimento e acabamento, conferem alto valor agregado ao produto final, refletindo-se em diferenciação de preço no mercado consumidor. Como destacado por Vilhena et al. (2022), o padrão visual do couro de peixes escamosos não apenas varia entre espécies, mas também apresenta diferenças conforme a região anatômica e o porte do animal.

Do ponto de vista estrutural, o processo de curtimento remove a epiderme, expondo a organização das fibras da derme. A microscopia eletrônica de varredura revela com precisão essa arquitetura fibrosa, permitindo avaliar tanto a disposição das fibras colágenas quanto os detalhes do característico padrão de lamélulas que confere ao material sua identidade visual única, como observado na Figura 1.


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A organização das fibras colágenas em tecidos biológicos segue princípios arquitetônicos bem estabelecidos na literatura científica. Estudos clássicos de histologia demonstram que a organização das fibras colágenas em tecidos animais segue padrões específicos e varia conforme a função biomecânica do tecido. Em peixes, estudos sobre morfologia dérmica sugerem que as fibras se dispõem em camadas cruzadas, criando uma resistência multidirecional. Esse padrão é particularmente evidente em espécies demersais como a pescada amarela, cujo tegumento precisa resistir a tensões mecânicas complexas. A microestrutura característica do couro de pescada amarela curtida com tanino vegetal é apresentada na Figura 2.


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A Figura 2A mostra o aspecto macroscópico do lado carnal após o curtimento, enquanto a Figura 2B revela em detalhe sua organização microscópica através de MEV. Nessas imagens, é possível identificar claramente o padrão de entrelaçamento das fibras colágenas: as camadas se dispõem de forma cruzada, criando uma estrutura semelhante a um tecido em xadrez. Em cada camada individual, os feixes de fibras correm paralelamente, mantendo espaçamentos uniformes entre si, mas com orientação que se alterna entre as camadas adjacentes. Esse arranjo em múltiplas direções explica as propriedades mecânicas únicas deste material biológico.


A avaliação histológica do couro por meio de cortes longitudinais e transversais é fundamental para uma análise completa da estrutura e qualidade do material após o curtimento. O corte longitudinal, realizado ao longo do comprimento do corpo do animal, permite observar a orientação e a continuidade das fibras de colágeno, além de avaliar a uniformidade da penetração dos agentes de curtimento ao longo do tecido. Essa análise é essencial para compreender a resistência mecânica do couro, uma vez que a disposição das fibras influencia diretamente suas propriedades físicas.


Já o corte transversal, que revela a estrutura em camadas, possibilita a verificação da espessura do couro e a distribuição dos componentes da derme, sendo útil para identificar possíveis falhas na uniformidade do curtimento e alterações na compactação das fibras. A combinação dessas duas abordagens permite uma avaliação mais precisa da qualidade do couro, garantindo um material com características adequadas para diferentes aplicações industriais. A avaliação microscópica do couro de pescada amarela curtida com tanino vegetal, com ênfase no corte longitudinal e transversal, é apresentada a seguir, na Figura 3.


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A análise da seção longitudinal revelou uma característica organização em camadas superpostas de feixes colágenos, com padrão de entrelaçamento progressivo entre as fibras. Foi observado um gradiente de espessura bem definido: as camadas mais superficiais apresentam feixes mais delgados e compactos, enquanto, em direção à região carnal (próxima à hipoderme), ocorre um aumento progressivo na espessura dos feixes fibrosos e nos espaçamentos interlamelares (Figura 3A). Essa disposição anatômica sugere uma adaptação funcional, onde as camadas superficiais mais densas provavelmente conferem resistência mecânica e proteção, enquanto as camadas mais profundas e espessas contribuem para a flexibilidade e capacidade de absorção de tensões. A transição gradual entre esses estratos é particularmente visível na Figura 3A, que destaca tanto a orientação preferencial das fibras quanto a variação morfológica ao longo do perfil dérmico.


Testes de resistência avaliando apenas as regiões do couro (cranial, medial e caudal)


Os recentes avanços no processamento de peles de peixes têm permitido avaliar a qualidade de diferentes espécies com potencial aplicação na indústria coureira. O couro de peixe destaca-se como um material inovador, cuja beleza e padrão único são determinados pelo tamanho e profundidade das lamélulas de proteção e pela inserção das escamas, características que o tornam visualmente inimitável. O estudo detalhado das propriedades desses couros é essencial para otimizar a cadeia produtiva e agregar valor ao produto final.


Dentre as espécies com maior potencial, a pescada amarela se destaca, assim como o pirarucu (Arapaima gigas), por apresentar elevado aproveitamento de matéria-prima e versatilidade de aplicação. A compreensão das características individuais desse couro é fundamental para direcionar seu uso na indústria, ampliando as possibilidades de produção de artigos de alto valor agregado. As propriedades físico-mecânicas do couro de pescada amarela foram avaliadas em três regiões distintas (cranial, medial e caudal), conforme apresentado na Tabela 2.


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A espessura média do couro foi de 2,50 mm, sem diferenças significativas entre as regiões. Esse valor supera os 2,14 mm relatados por Côrrea et al. (2021), possivelmente devido a variações no tamanho e peso dos exemplares utilizados. Quanto à resistência mecânica, observou-se diferença estatística na força máxima aplicada (P = 0,0035), sendo a região caudal a mais resistente, com valor 38,7% superior ao da região cranial. Em contrapartida, a região cranial apresentou maior elasticidade, com deformação de 3,2 cm (52,6% de alongamento), enquanto a caudal expandiu apenas 2 cm. Esses resultados sugerem que a região caudal oferece maior resistência à tração, enquanto a cranial se destaca pela flexibilidade, características que podem ser exploradas de acordo com a aplicação desejada.


As propriedades de tração e alongamento do couro estão intrinsecamente relacionadas à organização tridimensional das fibras colágenas na pele do animal. Como demonstrado por Cavali et al. (2022), a arquitetura característica desses materiais combina fibras paralelas à superfície da pele com fibras perpendiculares interconectantes, formando uma rede tridimensional que confere resistência mecânica e elasticidade. Contudo, cada espécie apresenta variações nesse padrão estrutural. Enquanto a tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus) possui uma proporção maior de fibras finas que se ancoram firmemente às fibras espessas (Santos et al., 2021), a pescada amarela mostra uma distribuição distinta que explica os resultados obtidos em nossos testes.


Nossos dados revelam que a região caudal exigiu maior força de tração, indicando maior rigidez estrutural. Essa característica provavelmente decorre da maior densidade e organização das fibras colágenas nesta área, que funciona como leme durante a natação, exigindo reforço mecânico. Essa região seria ideal para aplicações que demandem resistência a atrito e menor flexibilidade. Em contraste, a região cranial apresentou maior elasticidade, atribuível à orientação predominante das fibras colágenas tipo I (mais espessas) na derme. As regiões cranial e medial não diferiram significativamente no parâmetro de alongamento, sugerindo propriedades mecânicas similares que as tornam adequadas para usos que requeiram maior flexibilidade. Essas variações regionais destacam a importância de considerar a origem anatômica do couro ao planejar suas aplicações industriais.


O teste de rasgamento progressivo é um ensaio mecânico utilizado para medir a resistência do couro à propagação de um rasgo a partir de uma incisão inicial. Durante o teste, o material é submetido a uma força crescente que simula situações de uso nas quais o couro possa sofrer tração localizada, permitindo avaliar sua capacidade de resistir à continuidade do rasgo. Couros com boa resistência ao rasgamento tendem a apresentar uma malha fibrosa densa e bem distribuída, o que contribui para maior durabilidade e desempenho em aplicações práticas. Os resultados do teste de rasgamento progressivo realizado em couros de pescada em três regiões anatômicas distintas são apresentados na Figura 4.


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Os dados revelam diferenças significativas na espessura do material entre as regiões (P = 0,00098), com a região caudal apresentando maior espessura comparada às regiões medial e cranial. Essa variação morfológica, combinada com as diferenças na distribuição das fibras colágenas e no grau de estiramento natural da pele ao longo do corpo do animal, influenciou diretamente a resistência ao rasgamento (P = 0,0111). Embora as regiões cranial e medial não tenham diferido significativamente entre si quanto à resistência ao rasgo, ambas demonstraram valores superiores aos observados na região caudal (Figura 4). Esses resultados sugerem que, apesar da maior espessura na região caudal, a organização estrutural das fibras colágenas nas regiões cranial e medial confere maior resistência à propagação de rasgos, possivelmente devido a um entrelaçamento mais eficiente das fibras nessas áreas.


A interação entre fibras finas de colágeno tipo III e fibras espessas tipo I desempenha um papel crucial na determinação das propriedades mecânicas do couro, conforme demonstrado por Corrêa et al. (2021). Na região caudal da pescada amarela, observa-se uma organização histológica particular, caracterizada por menor densidade de fibras finas de ancoragem, mas com significativa sobreposição de fibras espessas na porção mediana da estrutura. Esta configuração, especialmente evidente na área central da região caudal (onde a espessura atingiu 3,11 mm), explica em parte os resultados obtidos nos testes mecânicos.


Embora não tenham sido detectadas diferenças estatísticas na força máxima aplicada entre as regiões (média de 177,8 N), as variações na resistência ao rasgamento sugerem diferenças na organização microestrutural. Estes achados corroboram com estudos em outras espécies, como o trabalho de Vilhena et al. (2022) com pirarucu, que identificou padrões regionais semelhantes relacionados à biomecânica da natação. No caso da pescada amarela, a maior rigidez caudal provavelmente reflete adaptações funcionais para locomoção, com desenvolvimento diferenciado do sistema colágeno.


Os resultados obtidos reforçam as conclusões de Corrêa et al. (2021) sobre a superioridade do couro de pescada amarela em comparação com outras espécies (tilápia e corvina), atribuída à disposição única e ao entrelaçamento eficiente entre os tipos de fibras colágenas. A escassez de estudos específicos sobre couros de pescada amarela na literatura científica destaca a relevância destes achados, que contribuem para o entendimento das relações entre estrutura e função em materiais de origem pesqueira, abrindo perspectivas para aplicações industriais diferenciadas.


Testes de resistência avaliando apenas os sentidos do couro (longitudinal e transversal)


Os resultados comparativos das propriedades mecânicas do couro de pescada amarela nos sentidos longitudinal e transversal da região medial são apresentados na Tabela 3. Embora não tenham sido observadas diferenças significativas na espessura do material entre as direções analisadas (2,46 mm no longitudinal versus 2,30 mm no transversal), os testes revelaram um comportamento mecânico distintamente anisotrópico. A resistência à tração no sentido longitudinal (8,10 N/mm²) mostrou-se aproximadamente 50% superior à registrada no sentido transversal (5,40 N/mm²), padrão que se repetiu para a força de ruptura, com valores de 151,60 N e 69,60 N, respectivamente. Esta diferença pronunciada sugere uma orientação preferencial das fibras colágenas ao longo do eixo longitudinal do animal, característica comum em tecidos dérmicos de peixes que sofrem tensões unidirecionais durante a natação.


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Em contraste, os parâmetros de deformação apresentaram o padrão inverso: o sentido transversal demonstrou maior elasticidade (75,67% de alongamento) e capacidade de estiramento (4,6 cm) comparado ao longitudinal (46,50% e força de ruptura de 27,66 N). Esta dicotomia entre resistência e elasticidade conforme a direção de aplicação da força reflete a complexa organização microestrutural do material, onde a orientação predominante das fibras colágenas no sentido longitudinal confere maior resistência à tração, enquanto a menor densidade de conexões interfibrilares no sentido transversal permite maior deformação antes da ruptura. Tais características devem ser cuidadosamente consideradas no processamento industrial e aplicações finais do couro, particularmente em produtos sujeitos a esforços mecânicos direcionais.


Os resultados de rasgamento progressivo na região medial nos diferentes sentidos do couro de pescada são apresentados na Tabela 4. Os resultados indicam que o couro apresentou propriedades mecânicas semelhantes nos sentidos longitudinal e transversal, sugerindo uma estrutura homogênea, o que pode ser vantajoso para aplicações onde a resistência uniforme é desejável.


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A crescente demanda do mercado por materiais com características diferenciadas, destacando flexibilidade e singularidade em detrimento da rigidez tradicional (Cavali et al., 2022), confere especial relevância às variações direcionais observadas no couro de pescada amarela. Enquanto estudos com tilápia do Nilo revelaram maior alongamento no sentido longitudinal e resistência ao rasgo no transversal devido à predominância de fibras finas (Santos et al., 2021), nossos resultados demonstram um padrão inverso na pescada, com superior resistência à tração (8,10 N/mm²) e força de ruptura (151,60 N) no sentido longitudinal, combinada com maior elasticidade transversal (75,67% de alongamento). Esta anisotropia singular amplia as possibilidades de aplicação industrial, permitindo que um mesmo couro atenda tanto a nichos de moda de luxo, que valorizam maleabilidade, quanto a segmentos que exigem robustez mecânica.


A análise quantitativa das fibras colágenas revelou uma distribuição assimétrica crucial para entender essas propriedades: 57,35% de fibras tipo I (espessas) no sentido longitudinal contra 55,10% de fibras tipo III (finas) no transversal. Esta organização explica a dicotomia desempenho-mecânico: as fibras tipo I conferem estruturação e resistência longitudinal, enquanto as de tipo III, mais abundantes no transversal, facilitam o entrelaçamento interfibrilar que permite maior deformação antes da ruptura (Figura 5). Tal complementaridade estrutural, associada à versatilidade comprovada nos testes de rasgamento sem perda significativa de resistência entre sentidos, posiciona o couro de pescada como material premium para aplicações que exigem simultaneamente durabilidade e adaptabilidade. Estes achados ressaltam a necessidade de considerar as variações microestruturais regionais no planejamento de cortes industriais para maximizar o potencial tecnológico deste biomaterial.


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Estudo recente de Souza et al. (2025), comparando a microestrutura de couros de pirarucu (Arapaima gigas) e tilápia (Oreochromis niloticus), revelou dados relevantes sobre a distribuição de fibras colágenas. Os autores constataram que ambas as espécies apresentam percentuais similares de fibras colágenas tipo I (média de 64,55%), sem diferença estatisticamente significativa entre elas. Contudo, observou-se variação marcante na proporção de fibras tipo III, sendo a tilápia significativamente mais rica neste componente (36,96%) comparada ao pirarucu (34,15%). Esta diferença aparentemente pequena revela-se crucial na determinação das propriedades mecânicas, pois as fibras tipo III atuam como elementos de ligação entre as fibras tipo I. Segundo os pesquisadores, a maior densidade dessas fibras de conexão na tilápia resulta em uma matriz colágena mais integrada, explicando a superior performance deste material nos testes de tração, rasgamento e elasticidade quando comparado ao couro de pirarucu. Estes achados reforçam a importância da composição qualitativa e quantitativa do sistema fibrilar na determinação das características tecnológicas dos couros de peixe, indo além da simples espessura ou densidade total de colágeno.


Conclusão


Os resultados sugerem que o couro de pescada amarela pode ser amplamente utilizado na indústria de vestuário, calçados, bolsas e artigos de decoração, com a vantagem de ser uma alternativa sustentável e de alto valor agregado, aproveitando um subproduto da pesca. As diferentes regiões do couro diferem em relação à resistência, sendo que a região caudal apresentou maior resistência à tração e maior rigidez (menor elasticidade), porém menor resistência ao rasgo. Além disso, os sentidos também impactaram na tração e alongamento, sendo que o sentido transversal apresentou maior alongamento e o longitudinal maior resistência à tração, estando associado aos tipos de fibras colágenas tipo I em maior proporção, além da forma de entrelaçamento das fibras. A adaptação de técnicas de curtimento, a escolha da região do couro, bem como o sentido de corte, é determinante para as suas propriedades desejadas e a qualidade do produto final.



Referências

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