Muito além da moda: a impressão 3D ganha espaço e escala na INDÚSTRIA GLOBAL
- simoni62
- 22 de set.
- 21 min de leitura

Por Luis Vieira
Segundo relatório da Arizton Advisory & Intelligence, empresa global de pesquisa de mercado e consultoria que fornece relatórios e dados de inteligência de mercado abrangentes para diversas indústrias, como saúde, tecnologia, bens de consumo e energia, o mercado da manufatura aditiva movimentou US$ 10,37 bilhões em 2019, com previsão de alcançar US$ 28,99 bilhões em 2025 — o que representa um crescimento composto anual de aproximadamente 18,69% entre 2020 e 2025.
Já a The Business Research Company, especializada em coletar e interpretar dados e informações para ajudar outras organizações a tomar decisões estratégicas, estimou que esse mercado cresceu de US$ 8,6 bilhões em 2020 para US$ 20 bilhões em 2025, e as previsões apontam que entre 2025 e 2029 a impressão 3D vai crescer numa taxa de 16% ao ano em nível mundial.
Apesar de os cálculos dessas estimativas não coincidirem totalmente, o fato é que, na medida em que as vendas escalam, os preços baixam, formando um círculo virtuoso.
Em 2005, por exemplo, segundo o sócio da 2M3D, Moatan Godoy, uma impressora de filamento de 200mm x 200mm x 200mm custava mais de US$ 10.000,00. Hoje, um modelo similar, considerado de entrada, custa cerca de R$ 1.500,00 via marketplace.
Essa redução de custo, aliada aos avanços tecnológicos, está fomentando um verdadeiro salto de produtividade na indústria de transformação. Encurtamento do tempo de fabricação de moldes e protótipos, redução de sobras de produção, desenvolvimentos monocomponentes e redução de mão de obra são alguns benefícios — embora o sistema de produção ainda careça de mais agilidade nas máquinas de impressão, o que dificulta a produção em larga escala e em tempo hábil para atender às necessidades dos canais de distribuição.
Mesmo assim, cresce o número de empresas que estão testando as novas tecnologias e também os lançamentos de produtos para a venda ao consumidor, principalmente entre marcas líderes de mercado.
No caso dos calçados, a possibilidade de personalização para atender a necessidades individuais, além da facilidade de se criar formas até então impossíveis de serem reproduzidas senão pelo sistema de impressão 3D, se aliam a outras vantagens fundamentais, como a digitalização da ferramentaria e dos próprios modelos a serem reproduzidos por demanda.
Quando uma marca global como a Nike ou a Adidas — que investem pesado em busca de novas tecnologias capazes de melhorar a performance de atletas — disponibiliza ao mercado um modelo de calçado 100% impresso, este certamente é um indicativo de que não se trata de uma moda passageira. Se bem que os calçados totalmente feitos por manufatura aditiva, por enquanto, estão mais direcionados ao uso casual e nem tanto para a prática de esportes de alto impacto aos pés.
Interessadas nesse avanço, as grifes contam com parcerias de laboratórios de biomecânica e das indústrias de base para ampliar o escopo de estudos e a oferta de materiais cada vez mais aperfeiçoados para desenvolverem novos produtos. Além dos exemplos internacionais, vários casos surgem no mercado brasileiro, como Usaflex, Top Shoes e Havaianas, por exemplo, que têm ao seu dispor uma rede de fornecedores de tecnologias de vanguarda, como FCC, Killing, 2M3D e Sazi.
Nesta reportagem vamos apresentar um pouco dessa história.
Plataforma de experiências
Reconhecida como marca de calçados de conforto, a Usaflex introduziu a tecnologia 3D pela primeira vez em 2023, com o Usa+Leve 3D.
“Foi uma edição especial, em que construímos, em parceria com a Gate 3D, um amortecedor totalmente impresso, algo inovador para o mercado nacional. Os modelos tiveram bastante sucesso comercial e aceitação, independente do perfil da consumidora, e geraram vários aprendizados, até porque a impressão 3D ainda tem muitos desafios, como a matéria-prima ser importada, os tempos de produção e tudo mais.

Depois, também passamos a utilizar em projetos internos para validar novas tecnologias de conforto, como é o caso da Impulse. Precisávamos validar o funcionamento do sistema e decidimos imprimir para fazer todos os ensaios iniciais. Isso evitou custos com matrizaria piloto e proporcionou maior rapidez nos testes”, relembra o gerente de Inovação/P&D, Alexandre Aloys Matte Junior.
Além de agilizar processos de prototipagem, testar novas geometrias de conforto e reduzir custos iniciais de desenvolvimento com projetos de inovação, cresceu a percepção de que se trata de uma tecnologia estratégica para explorar customização e personalização, que são tendências fortes do varejo.
A implantação do 3D impactou fortemente as áreas de P&D, modelagem técnica e engenharia de produto, ao proporcionar maior rapidez aos testes e novas formas e ajustes antes de ir para a linha piloto ou para fornecedores. Do ponto de vista comercial, a empresa também teve diferentes aprendizados, seja pelo posicionamento de preço ou pela percepção da consumidora em relação ao conforto oferecido através dos novos sistemas de amortecedores e os solados cujos designs só podem ser obtidos por impressão.
A Usaflex já levou ao mercado dois produtos através da tecnologia Usa+Leve 3D e desenvolveu uma série de soluções por manufatura aditiva. Contudo, a produção de um calçado totalmente impresso ainda não é realidade para a marca, que combina partes impressas com processos tradicionais.
A Usa+Leve 3D conta com solado em EVA e, na parte que recebe maior pressão ao longo do dia — os calcanhares — conta com amortecedor impresso em 3D, com tramas que aumentam a resiliência e a sensação de conforto.
Para entrar de vez nesse mercado, a Usaflex, além de contar com parceiros que mantêm estrutura e expertise adequadas para a impressão 3D — como é o caso de empresas como a Gate 3D, a Lebbre FCC e a 2M3D —, com as quais promove a inovação aberta para acelerar diferentes frentes de pesquisa e desenvolvimento, investe para capacitar as equipes de design e do laboratório para a operação de softwares específicos e equipamentos de impressão, além de fazer adaptações para abrigar a tecnologia.
Os maiores desafios hoje estão no custo, na velocidade das impressões, na disponibilidade local da matéria-prima para impressão e na resistência mecânica em escala industrial.
“É uma tecnologia extremamente inovadora e sofisticada, que ainda não se conseguiu adotar amplamente até pela sensibilidade do mercado aos custos. Ainda é mais viável para protótipos e customização do que para grandes volumes”, comenta Alexandre, lembrando que, no portfólio atual, a impressão 3D é cada vez mais relevante como ferramenta de desenvolvimento e inovação.
“É uma grande aliada para desenvolvimento de sistemas de conforto altamente sofisticados, alcançando anatomias que não são possíveis com processos de injeção, por exemplo. Não descartamos, a médio prazo, expandir seu uso em linhas especiais ou edições limitadas”, ressalta Alexandre.
Outro ponto relevante é o potencial para personalização do calçado ao perfil da consumidora, algo que dialoga diretamente com tendências globais de customização e conforto sob medida.
“Vemos o futuro da produção como um ecossistema híbrido, no qual o 3D soma agilidade, flexibilidade e customização, enquanto os métodos tradicionais garantem a essência de qualidade e conforto que marcam a trajetória da Usaflex.
No médio prazo, acreditamos que o 3D se consolidará como um aliado estratégico no desenvolvimento de produtos, permitindo maior agilidade, experimentação e assertividade. Mais do que apenas uma ferramenta tecnológica, enxergamos a impressão 3D como uma plataforma que valoriza a experiência da consumidora, reforçando atributos centrais da marca, como conforto e inovação”, finaliza.
Crescimento gradual e consistente

Atuando no mercado nacional e internacional, com o desenvolvimento de projetos e soluções criativas para indústrias calçadistas, a Top Shoes Brasil tem um portfólio bastante amplo e compõe uma gama completa de serviços e soluções para todos os modelos industriais de produção — seja produto manufaturado ou injetado — nos segmentos masculino, feminino ou infantil.
A capacidade criativa e técnica é um ponto forte, e a impressão 3D é vista como uma das grandes revoluções que ainda irão transformar e inovar o setor calçadista. “Hoje ela está em estágio inicial, mas a curva de crescimento é exponencial. Acreditamos que, nos próximos 5 a 10 anos, o mercado global terá uma participação muito maior de calçados produzidos com esse processo, principalmente em nichos de performance, personalização e sustentabilidade”, avalia o CEO e fundador da Top Shoes Brasil, Gustavo Dal Pizzol. A meta, segundo ele, é estruturar esse segmento como um braço de inovação que, em médio prazo, se torne também uma linha comercial relevante.
Para vencer o desafio da escalabilidade, a maior estratégia está em desenvolver processos híbridos — ou seja, unir a impressão 3D a etapas industriais já consolidadas para viabilizar volume e reduzir custos. “Investimos em maquinário de ponta para uma infraestrutura dedicada de laboratório. A curto prazo, o foco é consolidar pilotos e testes. No médio prazo, dar início em produções com parcerias estratégicas. E, no longo prazo, enxergamos a possibilidade de linhas completas de impressão 3D com foco em personalização e produção sob demanda”, assinala.
Sustentabilidade como prioridade
Tendo o olhar voltado para a sustentabilidade, a impressão 3D abriu portas para a Top Shoes reduzir desperdício, trabalhar com polímeros reciclados e até resíduos industriais. “Já testamos combinações com materiais recicláveis e polímeros de base mais sustentável, inclusive biodegradáveis. O objetivo é alinhar tecnologia de ponta à responsabilidade ambiental, algo que acreditamos ser fundamental para o futuro da indústria”, exemplifica Gustavo.
Outro ponto de atenção são as necessidades individuais únicas, e a empresa já está avançando nesse caminho. A digitalização do pé para ajuste e personalização é um processo que está em desenvolvimento com protótipos e testes. “Ainda não está disponível ao público em larga escala, mas é uma das frentes mais promissoras: o consumidor ter um calçado feito sob medida, com conforto e performance superiores”, avalia o CEO. Ele ainda lembra que a inovação se fortalece em ecossistemas, e não de forma isolada. Por isso, a Top Shoes mantém proximidade com centros de pesquisa e fornecedores de tecnologia que estão na vanguarda da impressão 3D.
Transformações na operação e na equipe
O sistema de produção por impressão 3D muda bastante o perfil de operação na linha de montagem. Embora a indústria calçadista seja tradicionalmente intensiva em mão de obra manual, na impressão 3D a ênfase está no design digital, programação e acompanhamento de processos automatizados.
A empresa investe em treinamento dos colaboradores para que adquiram expertise em modelagem 3D e operação de impressoras industriais, além de atrair profissionais especializados para acelerar essa transição no futuro. Pois, se por um lado, a operação 100% em 3D ainda não é competitiva em escala de massa, por outro, a tendência é de crescimento gradual e consistente.
Desafios e tendências
Os maiores obstáculos para este sistema de produção, hoje, estão ligados a:
Custo de matérias-primas específicas;
Tempo de produção em relação aos processos convencionais;
Logística de fornecimento de polímeros avançados;
Equilíbrio entre personalização e escala.
Esses desafios ainda demandam ajustes tecnológicos para tornar o modelo mais competitivo. Mas são barreiras que estão sendo superadas gradualmente, conforme o uso da impressão 3D avança na cadeia produtiva. Enquanto essa realidade ainda não se concretiza plenamente, as empresas de ponta continuam pesquisando soluções e analisando os rumos do mercado. Uma das tendências mais promissoras, segundo Gustavo, é o ponto de venda ao consumidor. “A ideia de imprimir um calçado personalizado diretamente na loja é extremamente interessante e, ao nosso ver, será realidade em alguns anos. Esse tipo de experiência se encaixa em um perfil de consumidor que valoriza exclusividade, tecnologia e conveniência. Lojas conceito, em grandes centros urbanos, poderiam ser o ambiente ideal para esse modelo, trazendo uma vivência inovadora e marcante ao consumidor”, preconiza o empresário.
Todas as áreas podem se beneficiar
Em 2016, a Killing começou a pesquisar sobre impressão 3D no mercado de calçados, com o objetivo de entender melhor sobre a tecnologia, quais materiais eram usados e se haveria sinergia com os negócios da empresa. Inicialmente, identificou uma oportunidade no segmento de prototipagem de solados. Hoje, a tecnologia Ked atua em diferentes mercados com um portfólio diversificado em resinas.

A gerente comercial da Kisafix/Ked, Raquel Becker, lembra que, como em toda nova tecnologia, o acesso à informação era bastante restrito no início — assim como o acesso às matérias-primas, que são todas importadas. “Desde a concepção até o lançamento da marca, levamos cinco anos. O desenvolvimento do produto foi realizado pelo time do Laboratório de Polímeros da Killing, mas também envolveu diversas áreas da empresa, como o comercial, que atuou diretamente junto aos clientes, trazendo suas dificuldades e desafios e levando as resinas Ked como solução. Além disso, o time de suprimentos, marketing e, com certeza, a área produtiva foram fundamentais para a criação da Ked, pois tivemos que nos adequar a uma nova dinâmica de trabalho”, contextualiza Raquel.
Aplicações e soluções práticas
Hoje, a empresa desenvolve diferentes linhas de produtos, indicadas para cada etapa do processo de fabricação de um calçado — desde o desenvolvimento da ideia até a prototipagem funcional. Para o desenvolvimento inicial, por exemplo, é possível imprimir um protótipo visual em tamanho real usando a linha Ked Pro, para verificar se o design está de acordo com o desejado. Já os protótipos funcionais podem ser impressos com a linha Ked Flex, que possui resinas com características semelhantes aos materiais finais do calçado — permitindo, por exemplo, a realização de testes de calce.
Mas a aplicação da impressão 3D não se restringe apenas ao produto final (calçado). Todas as áreas da empresa podem se beneficiar da tecnologia:
Operação: impressão de ferramentaria necessária para fabricação (gabaritos, peças de apoio etc.);
Manutenção: uso de resinas da linha Ked Tough para impressão de peças de reposição, evitando que equipamentos fiquem parados por falta de peças.
A Ked também está desenvolvendo resinas para aplicações em produtos terminados, como a impressão de saltos e solas.
Compatibilidade e diferenciais
As resinas Ked são compatíveis com impressoras SLA e DLP, com comprimento de onda de 405nm, de qualquer marca ou modelo, sem exigir equipamento específico. Basta configurar os parâmetros adequados para cada impressora. O diferencial está na capacidade da Killing de personalizar o produto conforme a aplicação e as necessidades de cada cliente. “O design e o desenvolvimento de produto são os principais beneficiados com a impressão 3D, porque aceleram muito a elaboração e o lançamento de coleções. A principal aplicação das resinas 3D ainda é a prototipagem, mas temos desenvolvimentos — em parceria com grandes marcas — de resinas que poderão ser usadas para **impressão de componentes para uso final em calçados”, esclarece Raquel.
Sustentabilidade e impacto
Estudos realizados no início do projeto identificaram redução no consumo de recursos e energia quando se considera o processo desde o desenvolvimento até a venda do produto. Isso ocorre graças à simplificação do processo, com eliminação de etapas e substituição de materiais. Outro cuidado com a sustentabilidade está no uso de materiais de fontes renováveis e reciclados nas novas formulações. “Com certeza, à medida que os custos baixam e os materiais melhoram, a impressão 3D vai ampliar sua participação nos distintos processos de fabricação de calçados e componentes. Na moda, há uma grande pressão por variedade, customização e velocidade. Por outro lado, a manufatura aditiva pode reduzir custos, melhorar a qualidade e reduzir lead times. A impressão em resina é a solução para esta equação”, enfatiza Raquel.
100% nacional
Sempre atenta às inovações tecnológicas, em busca de novas soluções que a diferenciem no mercado, a FCC atua em diversos segmentos como calçadista, automotivo, linha branca e agro. Nesse contexto, a impressão 3D surgiu como uma oportunidade estratégica de ampliar o portfólio e agregar valor às áreas em que empreende. Para isso, criou a startup Lebbre, como estratégia para se aproximar ainda mais dos clientes, gerar novas demandas e abrir caminho para negócios que transformam ideias em projetos concretos. “A partir do nosso know-how em formulação de compostos e do nosso DNA fortemente voltado à inovação, a Lebbre FCC criou a impressão 3D por pellets de termoplásticos flexíveis, em substituição a tecnologias tradicionais, como filamentos ou resinas. O sistema traz vantagens significativas, como a possibilidade de imprimir protótipos com os mesmos compostos já usados na injeção”, destaca o líder de Engenharia de Vendas da Lebbre FCC, Raul Eismann.

A impressão 3D com pellets flexíveis permite a fabricação de peças funcionais, com as mesmas propriedades mecânicas de uma peça injetada. Na prática, em poucas horas é possível obter protótipos técnicos ou mesmo peças finais prontas para validação, o que permite avaliar material, conforto e design. No processo tradicional, após o desenho da peça, o molde é desenvolvido e injetado para que se faça a validação — o que pode levar dias ou semanas, além de demandar investimentos elevados. Com a impressão 3D, eventuais ajustes são feitos diretamente no arquivo digital e impressos novamente, sem desperdício, já que os materiais termoplásticos são recicláveis e reutilizáveis.
A tecnologia, 100% nacional, foi desenvolvida integralmente pela FCC. Em termos práticos, o processo consiste em fundir o termoplástico em um fuso de extrusão e depositá-lo camada por camada, formando peças funcionais. “Nosso conhecimento profundo sobre o comportamento dos materiais, aliado à experiência em extrusão e injeção, garante a robustez e a confiabilidade da tecnologia”, assegura Raul.
A tecnologia FDM (Modelagem por Deposição Fundida) trabalha com pellets de compostos termoplásticos em temperatura de fusão inferior a 250 °C, o que amplia de forma significativa as possibilidades de uso. “Enquanto os filamentos são restritos a materiais de maior dureza (acima de 90 Shore), a tecnologia da Lebbre permite imprimir materiais altamente flexíveis, como compostos de conforto de 15 a 55 Shore A, até materiais em gel de dureza B50, com alongamento superior a 800%. Essa amplitude nos diferencia e abre novas oportunidades de desenvolvimento para os clientes”, ressalta.
Aplicação prática e vantagens
No setor calçadista, a empresa trabalha principalmente com PVC, TR e TPU, mas também pode processar materiais como ABS e Nylon. A impressora Lebbre Pró é equipada com dois cabeçotes independentes, podendo imprimir dois diferentes materiais, duas cores ou duas durezas na mesma peça. Além disso, trabalhar com pellets gera economia: os mesmos compostos utilizados na injeção podem ser aplicados na impressão 3D, eliminando a necessidade de filamentos ou resinas, que têm custos muito mais elevados.
Como já mencionado, o principal desafio está na comparação com a velocidade da injeção tradicional. Embora a impressão 3D tenha evoluído significativamente, ainda há uma diferença de tempo quando se compara o ciclo de injeção com o tempo de impressão de uma peça final. Outro desafio técnico é quanto ao uso de materiais que demandam temperaturas acima de 350 °C, impactando na fusão, fluidez e comportamento no processo. Por isso, a escolha e validação dos materiais é um fator importante para o sucesso da aplicação. “Por outro lado, a injeção não consegue entregar muitas geometrias de peças, principalmente internas. Podemos fazer, por exemplo, peças funcionais muito mais leves que as injetadas com o mesmo material, alterando a geometria interna.Isso possibilita a impressão de peças com menor preenchimento, agregando conforto e maior flexibilidade ao produto”, acentua Raul.
Visão de futuro
A impressão 3D está evoluindo rapidamente em todo o mundo e em diferentes tecnologias. É fundamental que as empresas calçadistas explorem seu potencial para reduzir prazos e aumentar a assertividade no desenvolvimento de produtos. A Lebbre FCC quer estar próxima dos clientes, cocriando soluções e ampliando as possibilidades de aplicação da manufatura aditiva no setor.
“Nosso objetivo é a cocriação de soluções que aumentem sua competitividade. Queremos entregar assertividade, redução de custos e prazos e novos caminhos de inovação que transformem o setor calçadista nos próximos anos”, conclui.
Perfis otimizados para cada necessidade

A 2M3D tem a solução completa para impressão 3D, desde filamentos, resinas e pellets até o fornecimento de máquinas e equipamentos para a impressão, e busca oferecer as melhores soluções para cada cliente. Para a produção de calçados funcionais, por exemplo, disponibiliza o TPU (poliuretano termoplástico), que reúne características como alta flexibilidade, alongamento e resistência à abrasão. Para sapatos inteiros ou partes como entressola, as resinas acrílicas podem ser as mais apropriadas. “O resultado da impressão, seja usando o filamento ou a resina, deve ter ótimo alongamento para que não se rompa com a flexão durante o caminhar, e alta resistência à abrasão para permitir o uso prolongado sem desgastes. Além disso, os materiais hoje já oferecem propriedades e aparência semelhantes ao couro ou tecido, o que torna o uso ainda mais versátil”, resume o sócio da empresa, Moatan Godoy.
Corroborando com os demais entrevistados nesta reportagem sobre o desafio que a velocidade de impressão representa à produção em escala, ele faz uma ressalva, recordando que os sistemas hoje estão mais rápidos: “É quase assustador, nos últimos anos a velocidade foi multiplicada por 10 vezes, mas, sem dúvida, ainda é uma importante limitação”, analisa. Outra situação a ser enfrentada é a baixa oferta de mão de obra qualificada para desenhar, projetar e conhecer o processo de manufatura aditiva. “Além da necessidade de adaptações para otimizar o resultado de peças impressas, ainda temos poucos profissionais na área”, lamenta.
Impressão 3D e sustentabilidade
Um dos pilares em calçados 100% impressos em 3D, especialmente usando TPU, é a sustentabilidade, por se tratar de um material fácil de ser reciclado. A impressão 3D normalmente é associada a filamentos, mas essa é apenas uma das tecnologias utilizadas, pois o mercado disponibiliza também materiais como resinas, metais e cerâmicas, por exemplo, a depender da finalidade.
Em calçados, os principais componentes hoje impressos são:
Solados
Entressolas
Palmilhas
Cabedais
Enfeites
Várias marcas já desenvolvem calçados inteiros por manufatura aditiva. “Na produção de calçados prontos, o que temos visto são impressoras de filamento (FDM) e resina (LCD ou laser), além de pellets (FGF).Os filamentos FDM são amplamente usados para produção de gabaritos e peças auxiliares de processo; As resinas LCD e laser, para protótipos e visuais; A impressão de moldes SLM é para injeção de peças em metal, sendo o mais comum na indústria calçadista a impressão direta em aço inox; A impressão de partes funcionais de calçados, principalmente esportivos, usa sinterização de pó (SLS) para obter peças com perfis otimizados para tênis de alta performance”, lista Moatan. Ele sustenta que a impressão 3D é inevitável de ser usada em todas as indústrias e que o segmento calçadista ainda está descobrindo seu potencial.
“Hoje é nicho, mas olhando para fora do Brasil, onde vemos um crescimento exponencial das tecnologias de manufatura aditiva, fico confortável em prever que também aqui no Brasil, e na indústria calçadista, há um crescimento explosivo desta tecnologia. A impressão 3D é uma indústria em nascimento, com novidades praticamente diárias. Apenas três anos atrás meu pensamento era de que iria demorar muito para termos produção de calçados apenas usando impressão 3D. Hoje, tenho certeza que em breve teremos no Brasil fazendas de impressoras fazendo calçados”, revela.
O futuro disruptivo da produção de calçados
Ter fazendas de impressão de calçados é um pensamento altamente disruptivo, no qual os calçados são produzidos sem usar injetoras, moldes, fôrmas, tecidos, couros ou sintéticos, sem adesivos ou costuras, com um número muito reduzido de pessoas na linha de produção. “Este pensamento, se levado ao extremo, permitiria que um país que hoje não tem cadeia de suprimentos calçadista possa produzir calçados”, instiga o empresário.
Repensar e otimizar processos

A Sazi oferece equipamentos e linhas completas de máquinas para produção de calçados, principalmente na parte da montagem, com ênfase em sistemas automatizados. Dentre as soluções, também desenvolve máquinas customizadas e impressoras 3D SLA (impressão em resina), além de prestar serviços de impressão 3D, tanto na tecnologia de resina quanto de filamento. “Atuamos fortemente na área de impressão 3D SLA — mesma tecnologia empregada para acabamento perfeito e performance compatível com os melhores calçados do mercado. Além disso, é possível trabalhar de maneira híbrida, como a Usaflex fez, em que a solução 3D compõe o calçado interagindo com EVA, borrachas e tecido”, enfatiza o diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Sazi, Anderson Antônio Zini.
Sugerindo que toda nova tecnologia pode causar estranheza no início da sua implementação — seja pelas dúvidas que ela traz ou pela nova forma de fazer algo que já temos presente no nosso dia a dia —, Anderson cita o caso do smartphone como exemplo: “Ninguém sabia que precisava de um até ter acesso a ele e utilizar. Com a tecnologia de impressão 3D podemos sentir a mesma coisa, mas, quando entendemos de fato a sua contribuição para o processo, fica fácil sua adesão em conjunto com os demais sistemas produtivos”, esclarece.
A fabricação tradicional de calçados requer extensas construções de mão de obra na linha de montagem e longas fases de prototipagem e teste, criando um tempo de produção completo de 12 a 18 meses antes do lançamento do produto no mercado. Com a impressão 3D, no entanto, os projetos esboçados são rapidamente convertidos em arquivos CAD prontos para produção, e a impressão 3D permite produção rápida e testes de campo iniciais com modelos totalmente funcionais, reduzindo significativamente o tempo total de produção. Se colocássemos em paralelo o processo tradicional de fabricação de calçados e componentes, podemos entender bem a velocidade que a manufatura aditiva agrega. No processo tradicional, a fabricação de matrizes para novos desenvolvimentos leva tempo e, geralmente, é terceirizada, o que aumenta ainda mais o lead time. Caso o projeto tenha alguma falha, é necessário começar novamente o processo e aguardar mais um longo período por uma nova matriz. O molde antigo que não está correto será sucateado, o que gera desperdício de matéria-prima.
“Levando em consideração a importância da adaptabilidade e do timing correto no mercado do calçado, longos períodos de desenvolvimento não combinam com as tendências de moda, o que deixa o processo de novos desenvolvimentos muito limitado. A impressão 3D vem exatamente para dar a velocidade que o ramo do calçado precisa, possibilitando desenvolvimentos extremamente rápidos, de baixo custo e sem desperdício”, esclarece Anderson.
A Sazi tem o cuidado de facilitar o acesso à nova tecnologia a empresas de todos os portes, desenvolvendo vários modelos de equipamentos com diferentes níveis de investimento, e com isso auxilia na disseminação da manufatura aditiva no setor. “Temos modelos de negócio tanto de venda quanto de locação, para facilitar para as empresas que não desejam fazer um grande investimento inicial — por mais que as impressoras tenham seu valor inicial bem abaixo, comparado com qualquer outro equipamento utilizado na produção de calçados”, sustenta o diretor.
Uma das vantagens para a implantação do sistema 3D nas empresas é que os softwares para projetar o calçado são os mesmos já utilizados na indústria hoje. A grande diferença é considerar que será executado através da manufatura aditiva. Então, o projeto pode ser otimizado pensando nisso, sem a necessidade de investimentos extras. A grande questão da manufatura aditiva, portanto, não é substituir os meios tradicionais de produção, e sim potencializar sua capacidade e coexistir, assim como outras tecnologias — a exemplo da automação. “A impressão 3D nos convida a repensar e otimizar nossos processos. Com sua possibilidade de reduzir tempo de processo, desperdício e, muitas vezes, custo, ela nos dá algo que valorizamos muito: versatilidade. Pois, no mesmo setup de equipamentos, é possível fazer uma infinidade de peças com as mais variadas aplicações”, conclui.
Tecnologia aos seus pés

A brasileira Havaianas lançou em 4 de agosto passado o seu primeiro chinelo 3D, em parceria com a startup alemã Zellerfeld. As sandálias foram feitas com a tecnologia de impressão FDM (Fused Deposition Modeling), na qual filamentos de TPU são aquecidos a altas temperaturas para formar camadas e estruturas. O processo permite diferentes densidades ao longo do calçado, resultando em um solado macio com sensação acolchoada, aderência durável e antiderrapante. O produto monomaterial não tem peças adicionais, cola ou costura, o que facilita a reciclagem. O modelo foi apresentado durante a Copenhagen Fashion Week, e cada detalhe foi desenvolvido a partir do modelo mais clássico da Havaianas. A forma anatômica do solado, mais orgânica e arredondada, enriquece a abordagem futurista e escultural do modelo produzido para a coleção verão 2026.

Também em parceria com a Zellerfeld, a Nike lançou no último dia 12 de agosto o Air Max 1000 por impressão 3D. O novo modelo, que une tradição e vanguarda de maneira ousada, apresenta design futurista e uma construção completamente reimaginada, preservando a essência da famosa linha Air Max, ao mesmo tempo em que introduz soluções de design inéditas. Impresso em 3D como uma peça única, sem necessidade de costura, cola e até mesmo cadarços, o tênis proporciona um ajuste mais preciso e uniforme aos pés dos usuários, além de oferecer conforto e flexibilidade. O material utilizado é elástico, permitindo que o calçado se adapte à anatomia individual do usuário.

Em abril último, a Adidas apresentou ao mercado o tênis Climacool 24 em manufatura aditiva, o primeiro tênis slip-on totalmente impresso em 3D em uma única peça, sem costuras, combinando tecnologia de ventilação com produção sustentável. O design em estrutura reticulada permite circulação de ar em 360°, ideal para dias quentes. Desenvolvido com poliuretano, o modelo mantém características essenciais de conforto: leveza, suporte para o arco plantar e amortecimento no calcanhar. A produção por impressão 3D representa um avanço ecológico, reduzindo significativamente o desperdício de materiais. Apesar de inspirado em tênis de corrida, o modelo foi projetado para uso casual.
Saúde e conforto: a Biomecânica por trás da impressão 3D de calçados
Entrevista com o coordenador do Laboratório de Biomecânica do Instituto Brasileiro de Tecnologia do Couro, Calçado e Artefatos, Ms. Eduardo Wüst.
T - Como a impressão 3D influencia na capacidade de amortecimento de impacto dos solados, especialmente em comparação com solados tradicionais moldados por injeção?
E - Dentro da área da biomecânica sempre trabalhamos com a análise dinâmica, em movimento. Com isso, é difícil fazer algum grau de comparação sem realizar um teste de absorção do impacto com ambos os materiais, tanto o solado feito por injeção quanto o produzido através de uma impressão 3D.
Mas, no momento em que grandes marcas do mundo esportivo e de performance criam e lançam produtos em material com impressão 3D — como por exemplo o Vaporfly Elite Flyprint (cabedal em 3D) e o Adidas 4DFWD (entressola em 3D), das gigantes Nike e Adidas — podemos acreditar que estamos próximos, ou já dentro, de uma nova era de produção de calçados e tênis esportivos.
T - Quais os principais parâmetros biomecânicos que devem ser avaliados para garantir que um solado impresso em 3D mantenha estabilidade e controle de pronação durante o caminhar e a corrida?
E - O padrão ouro para esse tipo de avaliação é através de um sistema de cinemetria, ou seja, filmar com câmeras de alta resolução os indivíduos caminhando ou correndo com o produto avaliado, para mensurar a estabilidade ou instabilidade gerada durante o movimento.
A estabilidade, inclusive, é uma variável que atende tanto o corredor iniciante quanto o mais experiente, que busca mais performance. Mas, por motivos diferentes: a estabilidade em um tênis para o corredor iniciante é importante para proteger suas estruturas musculoesqueléticas; já no corredor que busca performance, a estabilidade é uma aliada para minimizar a perda de energia durante a corrida.
T - Existe uma densidade mínima recomendada (em termos de dureza Shore, por exemplo) para que um solado 3D mantenha suas propriedades de amortecimento ao longo do tempo de uso?
E - Essa é a pergunta de 1 milhão de dólares! Ainda não temos todas as respostas nem mesmo com os materiais já produzidos e inseridos nos calçados há décadas — quem dirá para materiais em impressão 3D.
Estou desenvolvendo minha tese de doutorado na UFRGS justamente nesse tema, para observar o comportamento de inúmeras variáveis biomecânicas de diferentes tipos de entressola ao longo do uso do tênis por corredores. Mas esse tipo de estudo é longitudinal, precisa de tempo e de muitos quilômetros rodados para que tenhamos conclusões assertivas.
T - Como a personalização do cabedal por impressão 3D pode beneficiar a ergonomia e o ajuste ao pé? E quais os riscos biomecânicos se houver falhas no design dessa estrutura?
E - O benefício seria a capacidade de fazer um calçado mais próximo das características individuais de cada pé, em populações de diferentes regiões, com etnias, hereditariedade e tipos de pés distintos.
Os riscos, no caso de uma falha, seriam a não adaptação do calce, o que pode gerar desconfortos, calosidades, bolhas e lesões nos pés.
T - Existe risco de aumento de pontos de pressão em cabedais impressos em 3D? Como isso pode ser medido e evitado?
E - Mesmo a impressão 3D não utilizando uma forma física como na produção de calçados tradicionais, é de extrema importância que sejam inseridas na programação dessas impressoras médias antropométricas dos pés de usuários, respeitando as características dos pés em sua forma dinâmica (em movimento), assim como variações de comprimento, circunferência e largura.
T - Palmilhas impressas em 3D podem ser personalizadas para controle de distribuição de pressão plantar? Como isso é medido em testes funcionais?
E - É possível realizar comparativos de diferentes materiais, além de definir espessuras ideais para cada perfil de usuário e seus objetivos.
Hoje em dia, o método mais completo e fidedigno para essa avaliação é através de um sistema de baropodometria, que consiste em palmilhas sensorizadas que mapeiam as pressões na região inferior dos pés.
T - Quais testes funcionais são recomendados para avaliar a eficiência de palmilhas impressas em 3D quanto à absorção de impacto e suporte ao arco plantar?
E - Para absorção do impacto, o padrão ouro de avaliação é através de plataformas de força, que medem a força de reação do solo em três direções: vertical (a de maior magnitude e mais indicada para essa avaliação), ântero-posterior e médio-lateral.
Quando falamos em suporte ao arco plantar, é necessário cuidado. A menos que exista alguma patologia muito específica, o suporte excessivo pode prejudicar o movimento natural dos pés durante a caminhada ou corrida, já que o movimento do arco plantar auxilia na dissipação das cargas durante o deslocamento.
T - Como o peso final do calçado (influenciado por componentes 3D) impacta a eficiência da marcha e o risco de lesões por fadiga?
E - O parâmetro da massa do calçado tem relação direta: quanto mais leve o calçado, mais confortável ele será, menos energia o indivíduo gastará durante o movimento e menos fadiga ocorrerá na musculatura em comparação com um calçado mais pesado.
Normalmente, os materiais em impressão 3D são extremamente leves, porém ainda cabe cuidado com a qualidade e o tipo de material utilizado para que isso não interfira negativamente nesse aspecto.



Comentários