Por Luís Vieira
Embora a história da moda tenha a sua origem por volta de 600 mil anos a.C., com o surgimento da roupa, que está diretamente ligado à necessidade do ser humano de se proteger das intempéries, como frio, chuva ou calor, e também para cobrir a nudez, a palavra moda, que provém do latim modus e significa costume, surgiu em meados do século XV, no início do Renascimento Europeu. E este conceito que vem acompanhando os hábitos das pessoas desde então marca uma mudança de costumes na forma de se vestir, pois, antes desta época, as pessoas tinham por hábito usar um único estilo de roupa por toda a vida.
Quando falamos em moda com identidade brasileira, ainda estão muito presentes no imaginário as estampas alusivas a plantas e animais, como flores, frutas, onças e pássaros, por exemplo, bem como aspectos do artesanato. Mas a moda é influenciada por muitos elementos presentes na cultura de um determinado país, de uma região específica, ou até mesmo pela situação política ou social vivida.
É a partir do olhar que os criativos da moda lançam sobre todos estes aspectos que compõem o estilo de vida de uma sociedade, da natureza ou ainda de uma época, que a indústria cria os materiais e as cartelas de cores que vemos nos artigos disponibilizados nas vitrines à espera de consumidores que se identificam com os propósitos desses produtos, marcas e empresas. Neste contexto, o segmento da moda ao mesmo tempo que influencia comportamentos também é influenciado pelo meio, num processo que se retroalimenta em um infinito reinventar-se.
No caso do Brasil, somos um país forjado por grande variedade de culturas que por aqui desembarcaram, além da influência natural das tradições de nossos povos originários. Ademais, com extensão que ultrapassa aos 8,5 milhões de quilômetros quadrados e ocupando a quinta posição entre os maiores países, a nação brasileira possui um território dividido por cinco regiões com climas bem diferentes (no Norte, temos a predominância do clima Equatorial; no Nordeste, no Centro-Oeste e em parte do Sudeste, predomina o clima Tropical; já no Sul, o clima é essencialmente Subtropical), que acabam por influenciar a cozinha, a música, a língua, a arquitetura e, é claro, o modo de vestir das respectivas populações.
Três civilizações formam o primeiro pilar da nossa cultura
Na terra onde as pessoas nativas andavam nuas até que os seus territórios foram invadidos e a sua cultura praticamente dizimada, o que se entende por moda brasileira começa a ser formado já no período colonial (a partir da chegada dos portugueses, que trazem consigo os seus costumes e tradições, inclusive o sistema de trabalho escravo) sob influência de três civilizações fundamentais: indígena, portuguesa e africana, até hoje muito presentes em diversos aspectos da nossa cultura e identidade.
A divisão de origem das pessoas era percebida não somente pela cor da pele ou pelo trabalho exercido, mas também pelas vestimentas, que distanciavam as classes mais abastadas (vivendo no luxo e ostentação) das com menor poder aquisitivo e mais ainda dos pobres (para os quais luxo era ter uma calça ou um vestido para cobrir o corpo).
No Brasil Imperial, com a vinda da Família Real em 1808, iniciaram as importações de produtos desembarcados principalmente da Inglaterra, que influenciou fortemente a moda masculina adepta ao uso de calças e casacas escuras, cartolas, relógios, bengalas, luvas e lenços, e da França, que obteve a preferência entre as mulheres com seus vestidos de tecidos nobres, chapéus, joias, luvas e uma infinidade de outros adereços.
Com o estabelecimento da República, no ano de 1889, as mulheres conquistam alguns direitos fundamentais, como o trabalho remunerado fora de casa. Mais independentes, passaram também a usar saias e vestidos mais curtos e justos, além de ousarem nos decotes.
A estética tropical como referência
Hoje, a moda está menos impositiva e mais democrática quanto ao formato, tendo outras preocupações prioritárias, como funcionalidade, propósito e sustentabilidade. Mas a questão da brasilidade segue em aberto, sendo a estética tropical ainda o norte.
Um dos ícones da brasilidade é a cantora Carmem Miranda, que nasceu nem Portugal em 9 de fevereiro de 1909 e transcorreu entre o Brasil e os Estados Unidos durante as décadas de 1930 a 1950, trabalhando como artista de cinema, rádio, revista, teatro e televisão. Em seu visual exótico e descontraído estavam incluídos enormes adereços na cabeça, enfeitados com frutas, flores e estamparias tropicais. E até hoje, quase um século depois, ainda é comum marcas brasileiras orientarem as suas coleções por esta mesma estética tropical em cores, materiais, texturas e formas para a definição das características dos seus produtos, bem como de toda a linguagem da campanha para o lançamento e divulgação.
Mas a cultura do Brasil foi enriquecida pela mistura e influência de várias povos que se instalaram por aqui ao longo da história decorrente das imigrações de diversos países, como Alemanha, Itália, Holanda, Japão etc. Na verdade, é como se tivéssemos vários países dentro de um, pois cada grupo étnico trouxe consigo a continuidade das tradições de sua terra natal. E com o passar do tempo esses costumes acabaram incorporados num processo onde todas essas características tão únicas se fundem, dando origem a novas leituras e interpretações, devolvidas em processos criativos que repercutem na arte e na moda.
Se por um lado construímos uma identidade forte tendo o samba e o futebol como referência mundial, temos também a nossa brasilidade estabelecida a partir da literatura (a exemplo de Machado de Assis, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, José de Alencar, Monteiro Lobato, Jorge Amado), das artes (Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade), da arquitetura (Oscar Niemeyer), do cinema (Glauber Rocha), na música (Naná Vasconselos, Heitor Villa-Lobos), entre tantos nomes a serem lembrados, quando se pensa na cultura nacional.
No caso da moda, existe o entendimento de que num passado não tão distante as marcas brasileiras ainda se utilizavam quase exclusivamente da apropriação de coleções lançadas no exterior como fonte de inspiração para imprimir o estilo de seus próprios produtos. Mas essa prática foi diminuindo no final do século 20 e, principalmente, no início deste século 21, com a percepção de que para se manter competitivo no mercado mais do que aparência é preciso ter personalidade, ser sustentável e ter propósito. E estes são alguns dos maiores desafios para o setor, na busca pela moda com identidade brasileira que seja desejada tanto pelos consumidores nacionais quanto pelos compradores do mercado mundial.
Fatores que facilitam e que desafiam a moda autoral brasileira
Lembrando que hoje o Brasil está presente em mais de 160 países, em exportações tanto na modalidade private label quanto com marca própria, o presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), Haroldo Ferreira, enfatiza que “somos, sim, objeto de desejo no mundo e não devemos nada para calçados produzidos em grandes centros da moda internacional”. Com o entendimento de que os artigos de moda nacionais trazem em seu DNA, assim como o nosso povo e a nossa cultura, uma miscigenação de fatores, sempre com muita cor, alegria e criatividade, ele destaca que a sustentabilidade também é uma preocupação para os criadores das coleções. Vale salientar que, desde 2013, a Abicalçados e a Associação Brasileira de Empresas de Componentes para Couros, Calçados e Artefatos (Assintecal) realizam o programa Origem Sustentável, única certificação de processos sustentáveis da cadeia calçadista do mundo. Para integrar o programa que aborda os indicadores econômicos, sociais, culturais, ambientais e de gestão em sustentabilidade, é preciso evidenciar junto aos 104 indicadores do programa as ações realizadas em cada um desses âmbitos. A certificação conta com quatro níveis de evolução: Bronze (para empresas que cumpram o mínimo de 20% a 30% dos indicadores propostos), Prata (40%), Ouro (60%) e Diamante (80%).
Haroldo enfatiza que a moda é uma demanda do mercado consumidor. “Evidentemente, existem criações de vanguarda, que guiam esses sentimentos. Mas o principal desse movimento é, e sempre será, a razão de existir da indústria: as pessoas. No caso da cadeia produtiva do calçado, reconhecidamente temos uma capacidade de atendimento das diferentes demandas, de diferentes mercados e nichos ao redor do planeta. Empresas que desejam seguir fortes no mercado, devem ter, acima de tudo, flexibilidade produtiva para atender as nuances da moda de cada país”, pontua o executivo.
O amadurecimento do conceito de moda brasileira na indústria do calçado tem como facilitadores a capacidade produtiva de toda a cadeia, que se configura entre as mais completas para o setor no mundo. “Aqui temos desde os componentes, passando por maquinários, até o produto final”, contextualiza Haroldo, complementando que esta autossuficiência é um fator importante e coloca a indústria brasileira em um patamar altamente competitivo no mundo.
Embora com tantos pontos positivos, evidentemente há fatores que aumentam o desafio para que a indústria calçadista possa ser ainda mais competitiva, levando ao mundo novas marcas que tenham o estilo de vida brasileiro como ponto central. “No caso do Brasil, as dificuldades são as inerentes ao mercado, como um todo.
A indústria brasileira, em geral, sofre com alta carga tributária e problemas logísticos que certamente influenciam no ritmo das criações. Mas, de toda forma, devemos saudar os nossos criativos que, mesmo diante de todas as dificuldades, conseguem nos colocar como a maior indústria de calçados do Ocidente”, destaca o dirigente.
Para o coordenador do Núcleo de Design da Assintecal, Walter Rodrigues, podemos afirmar que existe, sim, uma força na moda brasileira, talvez relacionada muito mais à cor e sensu- alidade, com a maneira como a gente combina os acessórios com a roupa, a maneira como a gente usa no dia a dia. Mas, identidade da moda brasileira ainda não. “Primeiro porque a influência europeia é muito grande nas nossas coleções. Talvez falte coragem para a gente assumir o nosso olhar. As pessoas são tímidas e ainda precisam desse apoio das coleções internacionais. Vemos muitas referências de marcas internacionais como Prada, Gucci, entre outras. Estamos em um nível muito pouco avançado no que se refere a ter um olhar, genuinamente, brasileiro”, ressalta o especialista.
Lembrando que o consumidor brasileiro ainda vai muito pelo preço, pela massificação do mercado, Walter salienta que a Assintecal trabalha a pesquisa com uma metodologia de Pirâmide, a qual aponta que apenas 10% dos trabalhos são autorais e buscam realmente produtos diferenciados e inovadores. A maioria, 90%, dividida entre 30% que buscam tendências de mercado e 60% produtos já massificados, está interessada em preço e assertividades. “Acredito que seja até por uma sensação de ‘normalidade’. As pessoas querem se misturar à multidão, não querem ser destacadas. Dessa forma, infelizmente, penso que o consumidor médio braileiro ainda vê muito mais preços e isso acaba se refletindo nas grandes redes. O fato acaba sendo um problema para a criação, pois as marcas ficam muito preocupadas com o comercial, com a assertividade, que não ousam. Tenho convicção de que elas poderiam fazer algo bacana, diferenciado e com preço acessível, mas elas preferem apostar na cartilha do que já vem pronto das redes sociais, dos influencers e das grandes marcas internacionais”, lamenta.
Considerando que quando se pensa no sapato brasileiro, a imagem que vem à tona é a de um bom produto de couro, pois a nossa indústria sabe como fazer, foi treinada por muitos anos pelas companhias de exportação para isso e conta com mão de obra qualificada para essa produção, mas mesmo assim, este mesmo trabalhador precisa ser renovado. Walter ressalta que já faz muito tempo que a indústria brasileira exportou grandes volumes. “Quando a China entrou nesse mercado, diminuímos consideravelmente a produção desse tipo de produto. Porém, penso que quando usamos cores, diversidade, a sensualidade brasileira, temos grandes vantagens nesse mercado. Somos bons nisso, acentua o estilista e coordenador.
Acreditando que toda a importância hoje dada à sustentabilidade deva criar um novo direcionamento para a moda mundial, ele afirma que neste aspecto o Brasil tem condições de oferecer uma indústria altamente competitiva, principalmente para o mercado de exportação. “Temos visto o aumento da sustentabilidade em materiais e isso é muito positivo. Mão-de-obra de qualidade, aliada ao propósito e ao entendimento do design como ferra- menta de sustentabilidade nos trazem grandes vantagens, mas precisamos comunicar ao mercado mundial. A sustentabilidade é, hoje, o ponto mais positivo da nossa produção”, pondera.
O grande problema de imprimir uma identidade e estabelecer essa linha dentro da moda brasileira, na opinião de Walter, está na gestão do negócio. “A maioria das indústrias ainda está muito atrasada, fazendo produtos meramente comerciais e não trabalham a ideia de marca e design autoral. A cópia tira o valor da marca, tira o interesse de lojas importantes no contexto mundial. Afinal, por que irão comprar uma cópia se podem vender a marca original? A gestão baseada em produto e não em marca é o que tem trazido dificuldades para o Brasil. Estamos concorrendo no preço e nesse mercado não existe inovação”, reconhece.
Segundo ele, não é a moda brasileira que é desejada pelo mundo, e sim o nosso lifestyle. “Temos uma maneira de combinar as coisas, usar essa vastidão enorme de praias, o fato de sermos um país de verão quase todo o ano, temperaturas quentes, que atrai o mundo”, explica. Ainda assim, ele acredita que há grande potencial para a criação de produtos a partir disso e estar em qualquer lugar do mundo. “Temos aqui, em um país miscigenado e multicultural, todos os elementos para criar uma experiência brasileira, mesclando tipos europeus, asiáticos, latino-americanos. As marcas podem usar o diferencial da diversidade focado nos mercados que querem atingir. Essa diversidade toda pode ser a chave para muitos negócios, principalmente para a exportação. Nós precisamos mudar o pensamento de criar produtos meramente comerciais, que disputam apenas no preço, e estabelecer um ponto de virada para criação de marcas com identidade brasileira. É importante frisar que existe uma nova leva de designers, principalmente de pequenas empresas, que vêm trazendo algo novo, algo mais identitário. Mas ainda é um nicho muito recente”, finaliza o coordenador do Núcleo de Design da Assintecal.
Kommentit