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Em tempos de pandemia: a necessária reconstrução do Estado

Marciano Buffon

Pós-Doutor, professor da Unisinos

Vive-se tempos inimagináveis a nossa geração. Como uma espécie de tsunami planetário, um vírus conduz-nos por caminhos impensados e vivemos o presente de uma forma sem precedente. É certo que, felizmente, não tivemos – até então - a nefasta experiência de um conflito armado e, vale sempre lembrar, que “não há nada pior do que a guerra”, como dizia Hemingway. Por isso, esta pandemia é, seguramente, a pior experiência que os nascidos neste tempo (nos países que não tiveram guerras pelo menos) estão a partilhar.


Não obstante a natural angústia e inquietação, é fundamental manter a racionalidade humanista e fazer dela uma espécie de motor de propulsão para nossas escolhas e ações, seja no plano individual ou coletivo. Optar por esse caminho implica estabelecer uma escala valorativa de prioridades, na qual a vida humana ocupa o topo do cume. Preservar a existência, sobretudo dos mais fragilizados, consiste em imperativo humanista inegociável. Parafraseando o saudoso prof. Ovídio Baptista, o que diriam os pósteros, se essa geração assistisse ao padecimento dos mais vulneráveis com a mesma indiferença de quem comenta o tempo? Ou ainda, como é possível que alguém se declare “temente a Deus” e seja insensível à dor e ao concreto risco de morte alheia?


Se argumentos de ordem humanista não são suficientes, convém lembrar que nada mais destroça a economia do que empilhar cadáveres como se fossem apenas “danos colaterais”, lembrando aqui a infeliz expressão consagrada pelos “falcões de Bush” durante a trágica Guerra do Iraque. Estudos recentemente publicados sobre a Gripe Espanhola, de um século atrás, demonstram que cidades e estados americanos que fizeram a opção “pela economia” em detrimento das vidas, foram os mais afetados economicamente por aquela pandemia.


Ou seja, nesse primeiro momento, é desumano e antieconômico (inclusive) opor vidas à economia, mesmo que isso se apresente de uma maneira sútil e disfarçada de falso pragmatismo e aceitação da realidade. Tampouco, é possível que políticos discutam ciência. Aqueles hão de simplesmente agir em consonância com esta, até porque - se forem inteligentes e tiverem conhecimento histórico - haverão de lembrar que há um preço altíssimo a pagar pelo negacionismo científico e que democracia, como lembrava Asimov, não pode significar que “a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento”.


Tudo indica que será um período longo (ou muito maior do que nossa inquietação e angústia). O ônus para as finanças públicas será sem precedentes. Muitos negócios encontrarão a insolvência. Uma parcela expressiva da população ficará sem renda (seja aquela proveniente do emprego, seja da informalidade). São, pois, os três grandes desafios, a curto e médio prazo, que virão a reboque do maior antes mencionado. Em vista disso, não há, nesse momento, espaço algum para o mantra da austeridade pública, até porque, em países como o Brasil, ela foi sempre regressivamente seletiva. Mais do que nunca, o Estado há de exercer seu papel de protagonista e protetor, sobretudo daqueles que mais dele necessitam. Políticos e economistas vinculados a concepções radicalmente liberais não têm condições de seguir em frente nesta jornada. Simplesmente, porque precisam fazer tudo ao contrário do que sempre acreditaram ser o correto e, obviamente, sequer sabem como agir, concatenadamente, diante de tal quadro. Mal comparando, seria o mesmo que exigir que colegiais treinados em fazer soar o bumbo de uma banda marcial (coisa bem do passado), tivessem que tocar violino em uma orquestra filarmônica. Quanto antes deixarem seus postos, tanto melhor – inclusive para eles próprios.


Durante e depois da maior luta travada por essa geração, será necessário reconstruir a ideia de Estado, que nunca se confundiu com “governos de plantão”. Como inspiração histórica, lembremo-nos do New Deal, conduzido por Roosevelt nos Estados Unidos pós-crise de 29 ou ainda do próprio Plano Marshall, implementado na Europa do pósguerra. É lógico, as concepções Keynesianas que alumiaram tais planos precisam ser devidamente atualizadas para o multifacetado e globalizado Século XXI.


No plano interno, o gasto público aumentará enormemente, de um lado, enquanto a arrecadação fiscal cairá até mais drasticamente. Não bastam, pois, medidas pontuais até aqui adotadas (postergação de prazo para o recolhimento de tributos, linhas de crédito que sequer chegam a quem delas precisam, saques emergenciais no FGTS, pagamento de uma determinada quantia aos trabalhadores informais, entre outras), ou ainda, fazer uma Emenda Constitucional que tem o sonegado objetivo de possibilitar ao Banco Central comprar duvidosas carteiras de títulos detidas por bancos e corretoras privadas (PEC da Guerra). Com todo respeito aos outrora tocadores de bumbo (eu inclusive), tocar violino é muito mais complexo e desafiador e exige que os protagonistas não estejam comprometidos, visceralmente, com os fabricantes de tal tambor.


A intervenção estatal sem precedentes requer a elaboração de um grande e complexo plano, que passa por uma reestruturação do setor financeiro, com vistas - entre outras - a garantir uma efetiva concorrência e fazer com que o País deixe de ocupar a indesejável posição de “campeão de juros”, para irrigar e estimular a lenta e gradual retomada dos investimentos produtivos. No campo fiscal, será necessária uma reforma tributária imediata e profunda que desonere o setor produtivo, reduza drasticamente a regressividade do sistema e tribute, de fato, aos que capacidade econômica têm e que, ao longo da história, nunca foram incomodados pelo “leão”. Não será mais possível que – sem enormes riscos - permaneçamos sendo o modelo mundial de uma tributação injusta, que prima pela iniquidade e pela extrema complexidade, como tantas vezes já fora denunciado. Será necessário, também, a criação de um programa de renda universal para todos aqueles que já não conseguem e, certamente, não conseguirão prover seu próprio sustento a curto e médio prazo (eram mais de 50 milhões antes da pandemia que viviam abaixo da linha de pobreza definida pela Organização das Nações Unidas (ONU) - 5 dólares dia).


Mais uma vez, se não forem por razões humanitárias, que sejam apenas por razões econômicas; pois, se sabe o potencial de retorno que cada real possui quando direcionado para pessoas de baixa renda. Enfim, como afirma estudo recente do insuspeito Fundo Monetário Internacional (FMI) “políticas fiscais, monetárias e financeiras de grande envergadura e bem direcionadas tomadas na hora certa pelas autoridades de muitos países - na forma de garantias de crédito, linhas de liquidez, flexibilização dos prazos dos empréstimos, ampliação do seguro-desemprego, reforço dos benefícios e desonerações fiscais - têm sido a salvação de famílias e empresas” (Gita Gopinath - Conselheira Econômica e Diretora do Departamento de Estudos do Fundo Monetário Internacional).


Aos meus caros leitores que corajosamente seguiram até aqui - em tempos de lacração via twitter - é necessário alertar que a manutenção do receituário, até aqui prescrito e adotado como único possível, implica assunção de riscos desconhecidos e tão inimagináveis como essa desastrosa pandemia. É urgente uma guinada radical nos rumos sociais e econômicos, pois se avizinham possiblidades piores do que o maldito Covid-19. Basta olhar para o passado e lembrar, a todo momento, a frase de Ernest Hemingway...

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