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Os efeitos da pandemia do Covid-19 sobre o setor calçadista

Sérgio Roberto Knorr Velho

Mestre em Engenharia pela UFRGS, Engenheiro Químico (PUCRS), doutorando em Sistemas Mecatrônicos pelo PPMEC/Universidade de Brasília (UnB) e servidor federal do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC)

Figura 1: Documentos da Base de Dados – Web of Science


1. Introdução

A pandemia do Covid-19 (WHO, 2020) está afetando a todos e, principalmente, a indústria e as cadeias globais de suprimento por um nível de interrupção nunca antes visto em virtude da quarentena a que muitos estão voluntariamente submetidos. Restrições de abertura de centros comerciais e de negócios, restrição de transporte interestadual, intermunicipal e intramunicipal, suspensão de eventos culturais e esportivos, e decretação de estado de emergência ou de calamidade são algumas das medidas adotadas em todo o País. A extensão do impacto dependerá da duração e seriedade do surto, bem como de quando a atividade econômica deve se reiniciar e de quanto ela se recupera, as quais dependerão amplamente de intervenções do governo (OCDE, 2020).


Todas as empresas foram impactadas por essa crise e, para muitos, isso representa uma ameaça existencial. A queda na produção para o setor industrial, de maneira geral, foi de 9,1% em março, comparado com os níveis de fevereiro, mas espera-se uma queda ainda mais significativa. A perdas foram generalizadas em 23 dos 26 setores analisados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e estatística - IBGE (VALOR ECONÔMICO, 2020). Ao contrário de outros riscos de interrupção na cadeia de suprimento, os surtos epidêmicos começam pequenos, mas se expandem rapidamente e se dispersam por muitas regiões geográficas, criando muitas incógnitas, o que dificulta a determinação completa do impacto do surto epidêmico e as medidas corretas para reagir (IVANOV, 2020).


A publicação World Footwear divulgou um relatório, produzido por um painel de especialistas por meio de uma pesquisa, que preveem que o consumo de calçados mundial deverá declinar, em volume, 22,5% em 2020 (WORLD FOOTWEAR, 2020). A Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) informa que a projeção da retração será de 21,0% a 29,9% na produção do setor (em volume) no acumulado de 2020 (Abicalçados, 2020). Há uma dependência do mercado interno, já que 87% da produção são destinadas ao consumo interno e, desde 2014, o setor não apresenta crescimentos relevantes. As tentativas de recuperação do mercado exportador, aproveitando-se das vantagens cambiais, são de médio e longo prazo, e devem encontrar dificuldades como estoques asiáticos elevados, preços em declínio e demanda reprimida.

2. Metodologia

O objetivo deste trabalho prospectivo é entender melhor os possíveis impactos e efeitos da pandemia do Covid-19 para o setor calçadista, como deverá ser a recuperação do setor e quais os efeitos que esta crise deixará. A metodologia utilizada foi a de entrevista semiestruturadas que geraram dados qualitativos a serem analisados (RABIONET, 2011). As entrevistas foram executadas entre os dias 05 e 07 de maio de 2020 com cinco representantes de associações industriais, industriais e representante de Instituição de Ciência e Tecnologia (ICT). Devido ao tamanho reduzido da amostra de participantes, há limitações das conclusões deste trabalho.

3. Revisão das ações provenientes da pandemia do Covid-19

3.1. Ações da Ciência

A academia está executando um grande esforço para mitigar ou encontrar soluções para os problemas gerados pelo Covid-19. Este esforço demonstra-se pelos 2.631 documentos indexados (artigos científicos e de congressos), somente até abril de 2020, na base de dados Web of Science, contra 740 documentos registrados em todo o ano de 2019, conforme a Figura 1. Um crescimento superior à 255%.

Estes esforços são importantes na medida que buscam soluções imediatas para uma solução mais definitiva do problema, seja por uma nova molécula farmacêutica ou por uma vacina.


3.2. Ações dos governos

Já pela parte dos governos, estes devem, segundo recomendação da OCDE (OCDE, 2020):

• Planejar intervenções de mercado para verificar se o apoio é necessário e proporcional para solucionar falhas de mercado identificadas em um mercado específico como resultado da crise. Devem garantir que quaisquer medidas de apoio adotadas sejam transparentes e temporárias e que os efeitos positivos das medidas estatais não sejam superados pelos negativos decorrentes da distorção da concorrência.


• Projetar cuidadosamente quaisquer medidas direcionadas a empresas específicas durante esse período crítico, adaptar medidas de suporte específicas para resolver o problema identificado e, temporariamente, com monitoramento. Evitar ajuda seletiva para empresas que tinham problemas estruturais significativos antes da crise. Isso é possível em um mercado oligopolizado como o brasileiro.


• Sair dos investimentos assim que as condições permitirem e de uma maneira que promova a concorrência e conte com o conselho das autoridades da concorrência ao projetar essas estratégias de saída já em fase de planejamento das medidas a serem tomadas.


• Reembolsar de forma adequada e transparente as empresas nos casos em que a crise revelar a necessidade de impor às empresas novas obrigações de serviço público.


O Governo Federal anunciou duas medidas para reduzir os efeitos econômicos relacionados à pandemia nas micro e pequenas empresas, de forma a resguardar empregos e o pagamento de salários. A primeira trata do adiamento do recolhimento do imposto do Simples Nacional, pelo período de três meses, o que vai corresponder a uma renúncia temporária de R$ 22,2 bilhões da União e beneficiar 4,9 milhões de empresas. A segunda será a liberação de R$ 5 bilhões pelo Programa de Geração de Renda (Proger), mantido com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). A quantia será repassada aos bancos públicos para que eles concedam empréstimos voltados ao capital de giro das micro e pequenas empresas (SEBRAE, 2020).


O Governo também instituiu por meio da Medida Provisória n° 936/2020, o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda (BEm) para os trabalhadores com carteira assinada que tenham feito acordo com o empregador para redução proporcional de jornada de trabalho e de salário ou para suspensão temporária do contrato de trabalho. O valor é calculado a partir do que o trabalhador teria direito a receber como parcela do Seguro-Desemprego, com base no acordo firmado e na média dos últimos três salários.


O pagamento do benefício é efetuado 30 dias após a comunicação do acordo pelo empregador ao Ministério da Economia. O BEm é uma ajuda do governo para complementar a renda de quem trabalha com carteira assinada, preservando os empregos, garantindo a continuidade das atividades laborais e empresariais, diminuindo o impacto social (Brasil, 2020). Ações de ajuda econômica por intervenção estadual ocorreram até o início de abril em 25 estados e no Distrito Federal, intensificando o auxílio.


3.3. Formato da recuperação econômica

O quadro econômico pré-crise sugere sinais de fadiga do crescimento com indicadores econômicos fracos, manutenção do alto índice de desemprego, elevada ociosidade industrial e baixo investimento. Agrava-se este quadro com a crise. Assim, as condições de uma rápida recuperação, não tão extensa e onde as medidas de recuperação são efetivas, desenham uma recuperação em V, que seria improvável.


Uma recuperação na forma de um U sugere uma crise de extensão mais longa, onde as políticas de contenção econômica são parcialmente bem-sucedidas e onde os mercados críticos terão sido afetados parcialmente. Neste caso, uma recuperação rápida logo após um período razoável de estagnação requererá que problemas severos de liquidez e solvência bancária das empresas tenham sido razoavelmente preservadas (ARBACHE, 2020).


Já uma recuperação em formato semelhante ao símbolo da Nike, sugere grandes impactos sanitários e com uma recuperação lenta, com dificuldades de financiamento público e privado e com o consumo com forte propensão à poupança (EL PAÍS, 20/04/2020).

4. Análise qualitativa das entrevistas

As entrevistas semiestruturadas foram executadas com as seguintes perguntas orientadoras:

Quais são os efeitos da pandemia do Covid-19 para o setor calçadista?

Como deve ser a recuperação do setor?

Quais os efeitos esta crise irá deixar?


Os entrevistados unanimemente relataram que o setor já vinha sofrendo com uma crise econômica recente e com baixo crescimento. A crise da Covid-19 veio agravar este quadro, pois afetou o consumo das famílias e aumentou as incertezas. Apesar de todos necessitarem de calçados para a proteção e saúde dos pés, a decisão de consumo pode ser postergada. As vendas do varejo foram muito afetadas em virtude do lock down de muitos pontos de venda. Entretanto, algumas indústrias diminuíram suas atividades, com algumas unidades fechadas, mas outras mantiveram suas produções e atendimento dos pedidos em carteira. Isso ocorreu também no setor de componentes para calçados.


Algumas empresas conseguiram mudar seus processos para aproveitar o momento com produção de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) como máscaras, luvas e vestimentas que tiveram sua demanda incrementada. Outras estão reforçando estratégias em mercados menos afetados como os calçados de segurança.


Os efeitos da variação cambial já estão sendo sentidos, pois muitas matérias-primas possuem cotação em moeda forte e isto deverá ser repassado aos preços, mesmo em uma crise. Os estoques elevados podem minimizar estes efeitos inflacionários em uma tentativa de aguardar que o câmbio retorne a um valor estável. Entretanto, mantida a atual cotação elevada do dólar, repasses de preços deverão ocorrer, elevando assim os preços.

Todos fizeram relatos das ações governamentais para minimização dos efeitos econômicos da crise, principalmente do BEm com a redução proporcional de jornada de trabalho e de salário dos empregados ou a suspensão temporária do contrato de trabalho. A efetividade das ações governamentais foi apontada como relevante para o setor. Apesar disto, há relatos de demissões como uma estratégia de resguardar a situação financeira das empresas.


A situação financeira das empresas preocupa, pois aquelas que possuem condições de tomar crédito, são as mesmas que possuem uma boa gestão e estão equilibradas. Entretanto, aquelas que têm maior dificuldade financeira, são as que apresentam o maior risco para os bancos privados e públicos e onde são exigidas garantias que elas não possuem. Muitas empresas estão com dificuldades em tomar crédito em virtude do longo processo de aprovação do crédito e da documentação exigida, mesmo com a sinalização do governo de baixar a necessidade de comprovação de negativas. As possibilidades de retorno das atividades com um prazo de 90 a 120 dias são determinantes para a resiliência financeira das empresas.


Assim, a recuperação, segundo nossa pesquisa, deverá ser lenta, pois a demanda estará reprimida com um consumidor cauteloso e endividado. A decisão de compra deverá ser postergada, pois o consumidor deverá manter um nível reduzido de consumo, indicando que manterão esta redução no pós-Covid-19 (CNI, 2020).


A digitalização do consumo e o uso de plataformas comerciais digitais do comércio eletrônico serão um legado importante desta crise. A pesquisa revela que haverá mudanças na forma (mais digital) e na mentalidade (mais sustentável e duradoura) do consumo. Já há um movimento deflagrado por Giorgio Armani, durante a crise, por uma moda que supere o fast fashion e tenha novos caminhos (NICOLETTI, 2020). O consumidor está com apetite de mudanças, inclusive em sua rotina diária. Acredita-se que as questões de sustentabilidade se fortalecerão, após um tempo emocional de quarentena.


As empresas deverão melhorar a rastreabilidade de suas vendas, de forma a manter melhor controle de seus estoques no varejo. O projeto Sistema de Operações Logísticas Automatizadas (SOLA), que é a implementação de padrões para sistemas automatizados nas operações logísticas (Abicalçados, 2020), é uma oportunidade de o setor controlar melhor suas vendas junto ao varejo, melhorando sua eficiência financeira. As resistências ao projeto deverão cair, pois os controles fiscais estão se tornando mais eficientes, o risco das evasões torna-se mais caro e pode haver o prejuízo à imagem da marca.


Por fim, setor exportador deverá mudar pois os países consumidores ficaram expostos a poucos fornecedores asiáticos e devem buscar alternativas que possam ser vantajosas em preço e qualidade, que ajudam o Brasil como possível fornecedor, mantidas as condições cambiais favoráveis. Há preocupação dos estoques elevados de calçados, principalmente da Ásia, que podem levar a uma guerra indesejada de preços. O setor calçadista é muito resiliente e, apesar do tamanho e ineditismo desta crise, deverá superá-la buscando um novo patamar de consumo.

5. Conclusão

Resiliência é um conceito essencial no gerenciamento de crises empresariais, pois não apenas descreve a capacidade de uma organização de continuar funcionando durante um evento perturbador, mas o aspecto conceitual do termo também considera quais recursos foram acumulados antes de uma crise e, em seguida, implantados nela e durante as consequências (KUCKERTZ, et al., 2020).


Assim, as empresas devem utilizar sua capacidade de adaptar-se à situação em três momentos: Fase 1 - sobrevivência, principalmente com uma gestão financeira responsável e que permita a empresa superar os piores momentos; Fase 2 - recuperação, retomada gradual das atividades, com estruturas e recursos enxutos e eficientes, e resgatando a capacidade de adaptação e de agilidade de resposta; e Fase 3 - negócios como de costume, mas dentro de um novo paradigma do pós-Covid-19, conectados em um mundo mais digital, mais sustentável e mais emocional.

Referências

1. Abicalçados. (2020). Impactos do Covid-19 na Indústria Calçadista. Novo Hamburgo: Abicalçados.

2. Abicalçados. (07 de 05 de 2020). Sola. Fonte: Sola: https://www.sola.org.br/

3. Arbache, J. (2020). Qual será o formato da recuperação? Valor Econômico, 30/04/2020. Brasil. (01 de 04 de 2020). MP 936/2020. Brasília, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv936.htm, DF, Brasil.

4. CNI. (07 de Maio de 2020). CNI. Fonte: Os brasileiros e o consumo no pós-isolamento: https://static.poder360.com.br/2020/05/pesquisa-consumo-cni-fsb.pdf

5. El País. (20/04/2020). Anatomia de uma (difícil) recuperação econômica. El País.

6. Ivanov, D. (18 de March de 2020). Predicting the impacts of epidemic outbreaks on global supply chains: A simulation-based analysis on the coronavirus outbreak (COVID-19/SARS-CoV-2) case. Transportation Research Part E 136, 101922.

7. Kuckertz, A., Brändle, L., Gaudig, A., Hinderer, S., Reyes, C., Prochotta, A., Berger, E. S. (18 de April de 2020). Startups in times of crisis – A rapid response to the COVID-19 pandemic. Journal of Business Venturing Insights v.13, p. https://doi.org/10.1016/j.jbvi.2020.e00169.

8. Nicoletti, S. (20 de April de 2020). Luxury Society. Fonte: Luxury Society: https://www.luxurysociety.com/en/articles/2020/04/opinion-giorgio-armanileading-luxury-towards-new-paths/OCDE. (2020). OECD competitionpolicy responses to COVID-19. Paris: OCDE.

9. SEBRAE. (2020). Medidas oficiais para o enfrentamento do Covid-19. https://respostas.sebrae.com.br/wpcontent/uploads/2020/04/medidas-oficiais-x-covid-19-7.pdf: SEBRAE.

10. Valor Econômico. (06 de 05 de 2020). Valor Econômico. Fonte: Valor Econômico: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/05/06/industria-despenca-em-marco-e-deve-mostrar-queda-recorde-em-abril.ghtml

11. WHO. (30 de April de 2020). WHO. Fonte: WHO: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/events-as-they-happen

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