PEREIRA, Giulia1 ; WÜST, Eduardo2 e PALHANO, Rudnei
1- Especialista em biomecânica, Novo Hamburgo, RS
2- Mestre e doutorando em Biomecânica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul 3- Doutor em Biomecânica do Instituto Brasileiro de Tecnologia do Couro, Calçado e Artefatos (IBTeC) - Laboratório de Biomecânica
Resumo
Por muitos anos, a indústria calçadista tem realizado pesquisas, desenvolvimento e inovação para atender as diferentes exigências de modalidades esportivas e/ou necessidades fisiológicas. Neste sentido, podemos encontrar calçados com variadas funcionalidades, materiais, designs, entre outros. Este trabalho tem como principal objetivo analisar o comportamento da força vertical durante a fase de contato de um calçado instável. Participaram deste estudo 5 mulheres com idade de 25±4 anos e massa de 50±7 kg. Para a aquisição dos dados foram utilizadas duas plataformas de força AMTI e, foram coletadas 10 tentativas válidas a qual o sujeito abordasse a plataforma com o pé direito e na velocidade de 4 km/h ±5%. O calçado instável deste estudo é utilizado na prática de atividade física. Os resultados mostraram que o primeiro pico de força foi maior para a situação calçado, cerca de 5%, e diferenças significativas entre a situação descalço e com calçado para o primeiro pico de força.
Palavras-chave: calçados instáveis, marcha, biomecânica, equilibrio
Abstract
For many years the footwear industry has carried out research, development and innovation to meet the different demands of sports and/or physiological needs. In this sense, we can find sho- es with different functionalities and designs. The main objective of this work is to analyze the behavior of the vertical force during the contact phase of an unstable shoe. Five women aged 25±4 years and weighing 50±7 kg participated in this study. For data acquisition, an AMTI force platform was used, and 10 attempts were con- sidered valid in which the subject approached the platform with the right foot and at a speed of 4 km/h ±5%. The unstable footwear in this study is used in the practice of physical activity. The results showed that the first peak force was greater for the situation with shoes, around 5% and significant differences between the situation barefoot and with shoes for the first peak force.
Keywords: instable shoes, gait, biomechanics, balance
Introdução
Vários têm sido os estudos realizados na busca de um melhor entendimento sobre as características dos calçados e as consequências de seu uso para o aparelho locomotor; bem como a busca de inovação tecnológica em todo processo, desenvolvimento e produção. Com isto, o mercado apresenta diversos modelos de calçados com determinada função/objetivo. O calçado instável pode ser utilizado para diferentes finalidades terapêuticas, como por exemplo, dores nas costas, osteoporose, artrite, pé plano, esporão calcâneo, hálux valgo, problemas circulatórios (diabéticos mellitus), reabilitação de lesões nos membros inferiores, entre outras (MILLER et al, 2003; ROMKES et al, 2006). Corroborando ainda, Nigg e colaboradores (2011) relacionaram que os calçados instáveis produzem instabilidade definida, aumentam a atividade muscular em especial dos membros inferiores, contribuem na estabilidade dos usuários e reduzem as cargas articulares e possíveis dores. Miller e colaboradores (2003) compararam dois grupos sendo que alguns utilizavam o calçado instável Kangoo Jumps e outros o calçado convencional durante a corrida e a caminhada. Os sujeitos foram submetidos a treinamento de 12 semanas e o grupo que utilizava o calçado normal apresentou incidência de lesão quando comparado com o grupo que utilizava o calçado Kangoo Jumps. As lesões relacionadas foram: dores no músculo tibial anterior, fascite plantar, entorse de tornozelo, entre outros. Em contrapartida, 58% dos sujeitos que utilizavam o calçado Kangoo Jumps apresentaram dores no arco plantar e 30% apresentaram lesões superficiais no tecido epidérmico, como por exemplo bolhas. Segundo Nigg e colaboradores (2011), os calçados são construídos como forma de fornecerem um dispositivo de treinamento neuromuscular e/ou fortalecer os músculos do sistema locomotor. Alguns estudos encontraram alterações cinemáticas e/ou cinéticas com o uso de calçados instáveis (Kälin and Segesser 2005, Boyer and Andriacchi 2009, Buchecker et al. 2010, Nigg et al. 2010, Stöggl et al. 2010, Roberts et al. 2011); também alterações posturais (New e Pearce, 2007); alterações na pressão plantar (Stewart e colaboradores, 2007; Maetzler e colaboradores 2008), entre outros (Korsten e colaboradores, 2010; Landry e colaboradores, 2010). Observou-se ainda que o calçado instável contribui para o aumento de 100% na oscilação do CoP (centro de pressão) para a direção anteroposterior quando comparado com a situação descalço (NIGG et al, 2011).
Na estrutura do calçado, por exemplo a parte inferior, o solado tem função determinante para absorver o impacto e restituir a energia durante o movimento. O calçado instável utilizado neste estudo tem o solado com geometria similar ao MBT (Masai Barefoot Technology), ou seja, com solado arredondado no sentido ânteroposterior proporcionando instabilidade durante o movimento. O objetivo principal do material utilizado na confecção de solados dos calçados é a diminuição das forças de impacto, sendo que, durante o impacto a colisão entre o pé e o solo gera uma onda de choque que é transmitido ao sistema musculoesquelético. Esta onda de choque tem magnitude entre 5 a 15 vezes a aceleração da gravidade e é atenuada para 1 a 3g na região da cabeça (SHORTEN, 1993; AMADIO, 1996). As forças de impacto e ondas de choque são influenciadas pela massa do sujeito, velocidade, cinemática do toque do pé ao solo, propriedades do calçado e propriedades da superfície, entre outras (NIGG, 2010; PALHANO, 2013). Atualmente, há vários estudos voltados para os calçados convencionais e/ou minimalistas, deixando de lado os calçados instáveis. Diante disso, fica evidente a importância à busca pelo conhecimento biomecânico, desenvolvimento, produção e avaliação dos calçados instáveis. Sendo assim, vê-se a necessidade da realização deste estudo, que tem como principal objetivo analisar o comportamento da força vertical de reação do solo em mulheres nas condições descalças e com calçado instável durante a marcha.
Materiais e método
Participaram deste estudo 5 sujeitos do gênero feminino que foram recrutados pelo processo nãoprobabilístico do tipo intencional, sendo que todos os sujeitos não tinham utilizado o calçado instável Kangoo Jumps anteriormente. Os participantes da pesquisa tinham idade de (25 ± 4) anos; massa de (50 ± 8) kg. Foram excluídos os indivíduos que apresentaram histórico de lesões ou alterações neuro-músculo-esquelético e/ou submetidos a cirurgias ortopédicas/neurológicas nos últimos dois anos. Logo após a demonstração do protocolo os sujeitos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido aprovado pelo comitê de ética da Feevale sob o n. 252.964. Os procedimentos para aquisição de dados foram: sujeitos da pesquisa caminharam sobre uma passarela de 10 metros sendo que ao longo da passarela estavam fixadas no solo as plataformas de força (modelo OR67-2000, AMTI, com taxa de aquisição de 2kHz). No controle da velocidade foi utilizada a forma indireta, sendo que foi mensurado o tempo de cada aquisição através de fotocélulas dispostas a 3 metros de distância entre si. Foram consideradas válidas as 10 tentativas para cada situação na qual o sujeito abordasse a plataforma com o pé direito na velocidade de 4 km/h ± 5%. As situações foram: descalço e com calçado instável Kangoo Jumps, sendo que as aquisições dos dados foram randomizadas. O calçado instável tem o solado em formato arredondado e, de acordo com o fabricante, o calçado Kangoo Jumps absorve até 80% do impacto (KANGOO JUMPS). Antes da aquisição dos dados os sujeitos da pesquisa passaram por um período de adaptação com o calçado instável por aproximadamente 5 minutos. As variáveis utilizadas neste estudo foram: Primeiro Pico de Força (PPF) e Taxa de aceitação do peso (TAP) da força vertical de reação do solo (FVRS) durante a caminhada. A TAP foi determinada pela derivada primeira da força vertical de reação do solo compreendido na faixa entre 10 a 20% do PPF (Nigg, 2010). Para determinar as diferenças entre as situações descalço e calçado entre as variáveis foi determinado com o teste t de student com nível de significância de 5% através do programa estatístico SPSS.
Resultados e discussão
Através da Figura 1, observou-se que o PPF foi maior para a situação calçado em comparação a descalço em aproximadamente 5%. Na comparação estatística observou-se que há diferença estatística entre a situação descalço em comparação ao calçado instável (p= 0,049). No estudo de Santos (2007) os resultados vão ao encontro ao deste estudo, entretanto, no trabalho de Clarke e colaboradores (1983) que analisaram calçado com bolha de ar comprimido, encontraram valores superiores (1,99 ± 0,21 PC) aos deste estudo. Acredita-se que o valor do primeiro pico de força do calçado deste estudo pode estar relacionado com a rigidez do mesmo, ou seja, da mola fixada na entressola do calçado quando comparado com a situação descalço na qual o pé apresenta o coxim adiposo como um dos sistemas de amortecimento durante a marcha. Outro estudo muito similar (Sacco e colaboradores, 2007) comparou as variáveis cinética de 8 sujeitos do sexo feminino para as situações: Descalço, Tênis e Sandália em velocidade auto selecionada. Os autores encontraram para o primeiro pico de força valores significativos e superiores Descalço (1,09 ± 0,06 PC); Sandália (1,18 ± 0,07 PC); Tênis (1,14 ± 0,05 PC) quando comparados com os resultados encontrados no presente estudo. Acredita-se que estas divergências entre os valores possam estar relacionadas com a velocidade dos sujeitos, visto que, as variáveis cinéticas são influenciadas pela velocidade durante a locomoção (WHITE et al, 1996; BRUNEIRA & AMADIO, 1993). Neste sentido ainda, no estudo de Newton (1995) que comparou o calçado Kangoo Jumps com tênis convencional, os autores encontraram valores similares do pico de força entre o calçado Kangoo Jumps (2,85 ± 0,37 PC) e o tênis (2,62 ± 0,21 PC) durante o jogging.
Figura 1. Primeiro Pico de Força para a situação descalça e com calçado.
Newton e colaboradores (1995) encontraram o tempo do pico de força aproximadamente 25% maior para o calçado Kangoo Jumps em relação ao calçado convencional. Já a taxa de aceitação do peso, que é derivada primeira, é compreendida entre 10 a 20% do PPF durante a marcha. A maior TAP, ou seja, a maior inclinação da curva ocorreu para a situação descalço em comparação ao calçado, conforme Tabela 1. Relacionando as situações, observou-se que o calçado deste estudo absorveu 45% do impacto durante o movimento, ou seja, divergindo do informado pelo fabricante. No entanto, o fabricante não informa como foi determinado o índice Figura 1. Primeiro Pico de Força para a situação descalça e com calçado artigo científico.indd 94 23/02/2023 11:58:05 março | abril • 95 de absorção do impacto. Em um estudo similar, Newton e colaboradores (1995) encontraram através do impulso entre o contato do pé no solo até 50ms da fase de apoio aproximadamente 47% menor o impacto do calçado Kangoo Jumps em relação ao calçado convencional durante o jogging, indo ao encontro dos resultados deste estudo. De acordo com Palhano (2013) e Nigg (2011), o impacto é uma variável importante para a etiologia das lesões em atletas. Segundo os autores, as propriedades físico/mecânicas e o design do solado influenciam a absorção do impacto, ou seja, na taxa de aceitação do peso.
Tabela 1. Taxa de aceitação do peso
Conclusão
Através deste estudo, pode-se concluir que nas comparações entre a situação descalço e com calçado instável há diferença significativa entre as situações para o primeiro pico de força, ou seja, ocorre um aumento de 5% quando os sujeitos utilizaram o calçado Kangoo Jumps. Acredita-se que o calçado avaliado contribua para o aumento da atividade muscular. No entanto, observou-se que o calçado apresentou 45% de absorção do impacto durante a marcha. Sugere-se que trabalhos futuros utilizem outras variáveis, como por exemplo, CoP, energia de retorno, entre outras, para verificar a influência da instabilidade durante a locomoção humana.
Revisão bibliográfica
1. Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT. NBR 14838: determinação do índice de amortecimento do calçado, 2011.
2. Amadio CA, Duarte M. Fundamentos biomecânicos para a análise do movimento humano. São Paulo: Laboratório de Biomecânica - EEFUSP, 1996.
3. Boyer, K.A Andriacchi, T.P. Changes in running kinematics and kinetics in response to a rockered shoe intervention. Clinical Biomechanics, 24 (10), 872–876, 2009.
4. Buchecker, M., et al.,. Lower extremity joint loading during level walking with Masai barefoot technology shoes in overweight males. Scandinavian Journal of Medicine and Science in Sports, 2010.
5. Bruneira CAV, Amadio A. Análise da forca de reação do solo para o andar e correr com adultos normais do sexo masculino durante a fase de apoio. Anais do Congresso Brasileiro de Biomecânica, Santa Maria, Brasil. Santa Maria: Sociedade Brasileira de Biomecânica.1993:19-24.
6. Kangoo jumps. Disponível em: . Acessado em: 01 fev. 2023.
7. Korsten, K., Mornieux, G., and Gollhofer, A. The effectiveness of MBT shoes in plyometric training with soccer players. Clinical Journal of Sport Medicine, 20, 231. 2010.
8. Miller N. Taunton JE, Fraser S, Rehab B, Rhodes E, Zumbo B. Kangoo Jumps: an innovative training device. British Columbia medical journal. 2003;45(9):444-8,.
9. Newton RU, Humphries BJ, Ward IB. Reducing ground impact forces during jogging: An evaluation of shoes with spring. Lismore, NSW, Austrália. 1995.
10. Nigg BM. Biomechanics of Sport Shoes. University of Calgary, 2010.
11. Palhano R. Análise mecânica e biomecânica de solados para calçados. Tese de doutorado do departamento de Engenharia de materiais. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
12. Roberts, S., Birch, I., and Otter, S. Comparison of ankle and subtalar joint complex range of motion during barefoot walking and walking in Masai Barefoot Technology, 2011.
13. Sacco ICN, Tessutti VD, Aliberti S, Hamamoto NA, Gomes DR, Costa MSX. Força reação do solo durante a marcha com uso de Tênis e sandália plataforma. Fisioterapia em movimento. 2007;20(3):55-62.
14. Santos AMC. Análise cinética da marcha de mulheres em três condições: descalça e utilizando calçados de salto baixo e salto alto. Dissertação de mestrado do departamento de Educação Física. Universidade Estadual de Santa Catarina. Florianópolis, 2007.
15. Shorten MR. The Energetics of Running and Running Shoes. Journal Biomechanics. 1993;26:41-51.
16. Stöggl, T., et al. Short and long term adaptation of variability during walking using unstable (MBT) shoes. Clinical Biomechanics, 25 (8), 816–822. 2010.
17. White SC, Yack HJ, Tucker CA, Lin HY. Relation of vertical ground reaction forces to walking speeds. Gait and Posture. 1996;4:167-20
Comments