* Marciano Buffon - pós-Doutor, professor da Unisinos / marciano@buffonefurlan.com
Há um debate ideológico marcado por arraigadas posições pré- -estabelecidas, em relação as quais nenhuma das partes cede um milímetro e os argumentos contrários servem apenas para confirmar as certezas construídas de uma forma irrefutável, sobretudo depois do advento das redes sociais. Vive-se, pois, aquilo que Cass Sunstein, em apertada síntese, já denominava, antes mesmo da massificação das comunicações via rede, de uma espécie de “tribalização”, cuja convivência tão somente com iguais torna as certezas mais incontentáveis dentro de tais grupos dando ensejo “a era do radicalismo” - título de sua obra, a qual é fruto de um experimento social desenvolvido no âmbito acadêmico.
Um exemplo privilegiado deste embate reside na infrutífera discussão sobre “qual é o papel do Estado” no campo econômico e social. Pouco espaço há para racionalidade ou para análise de argumentos, a partir dos quais se poderia chegar a uma justaposição. Porém, vale a resistência de se tentar prosseguir no debate de um tema desta magnitude, o qual diz respeito a todos que estão a compartilhar a existência em tempos tão conturbados.
Um bom indicativo consiste em examinar as consequências da implementação de determinadas concepções econômicas e sociais. Fazendo-se um necessário recorte, em países da América Latina (Brasil em especial), a redução de políticas de proteção social, bem como a obtenção de ganhos de produtividade - com ênfase na diminuição da renda destinada ao trabalho - são efetivas para o controle do gasto público e o crescimento econômico em médio e longo prazo? Ou se poderia dizer que, tais políticas, provocam algo a ser denominado de “efeito bumerangue”, isto é, num primeiro momento, resultam a melhora nas contas públicas e o aumento de produtividade; porém, no tempo seguinte, voltam-se contra aqueles que efemeramente foram beneficiados?
Infelizmente, parece que a segunda assertiva possui maior probabilidade de ser procedente. Por parte do Estado, ao adotar ações que resultam redução da proteção social, sobretudo daquela parte da população mais fragilizada, os eventuais ganhos decorrentes no gasto social perdem-se num espaço de tempo muito curto, uma vez que, ao acelerar a miserabilidade, coloca- -se um contingente expressivo da população diante das duas indesejáveis alternativas: mendicância ou marginalidade. Por mais que ações altruístas da população (caridade privada) tenham um efeito meritório, serão insuficientes para evitar as severas consequências de um processo dessa natureza.
Da parte da iniciativa privada, os eventuais ganhos de produtividade e rentabilidade, decorrentes, quase exclusivamente, da redução da pressão salarial, possuem um prazo de validade igualmente muito curto, pois eles tendem, naturalmente, a se esvaírem diante de um quadro recessivo e de redução do consumo, em face da compressão da renda daqueles que justamente poderiam consumir os bens e serviços produzidos. Não é por acaso que muitas atividades industriais, cujos produtos estejam voltados ao mercado interno, acabam por se inviabilizar e são encerradas, gerando o fenômeno da desindustrialização em larga escala.
O aviltamento da renda laboral, quando levado ao extremo, repercute negativamente no consumo de bens ou serviços produzidos também por aqueles que, inicialmente, foram beneficiados. Logo, uma ampla, geral e irrestrita precarização e informalidade das atividades laborais, quando adotadas como política de Estado, reduzem, por óbvio, o poder de compra de todos os agora denominados “colaboradores”. O empreendedorismo de necessidade, que surge como alternativa - como um futuro de liberdade para trabalhadores, em uma economia disruptiva - tem construído um cenário em que o “pseudo-empreendedor” pensa ser livre para exercer suas atividades, quando, na verdade, nunca esteve tão submetido aos nocivos efeitos do trabalho ilimitado e indutor dos mais diversos males. Com uma renda cada vez menor, sequer consegue satisfazer suas necessidades mais básicas, muito menos manter aquecido um mercado de consumo voltado para produtos que ocupam uma posição de menor imprescindibilidade (alguns denominam isso de processo de “uberização”).
Dito de outra forma, quem produz mercadorias voltadas ao mercado consumidor interno necessita, singelamente, de cidadãos que tenham renda suficiente para adquirir tais mercadorias; do contrário, a redução na escala de produção e, por decorrência, de receitas absorverá inapelavelmente os efêmeros ganhos, frutos da redução da pressão salarial.
Esse debate talvez fosse diferente se colocado em outros cenários. Porém, há de se ter presente que a América Latina erigiu sociedades extremamente desiguais (rivais dos países Africanos no quesito Índice de Gini), cuja concentração de renda é, concomitantemente, causa e consequência de economias disfuncionais, que potencializam conflitos e tensões, as quais, no extremo, podem levar ao caos econômico e social.
Enfim, admitindo-se toda espécie de confrontação teórica racional (para não cair na armadilha denunciada no início), é possível dizer que, neste desigual espaço de mundo, a adoção de políticas públicas voltadas à redução da proteção social ou da renda produz o que se poderia denominar de “efeito bumerangue”, pois as consequências de tais medidas atingem aqueles que, num primeiro momento, beneficiaram-se delas e, portanto, tornam-se vítimas de si - como se fosse possível exercer o papel de um autoalgoz.
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